Ciência
12/10/2020 às 15:00•4 min de leitura
Apesar de o cinema ter sido introduzido em meados de 1898 na Coreia do Norte, foi apenas no final da década de 1950 que a indústria começou a ser movimentada ativamente, ainda que com o intuito de fazer propaganda de exaltação do então líder Kim Il-sung, o avô do atual líder Kim Jong-un.
Foi durante o período em que a Coreia do Norte foi ocupada pelo Exército Vermelho, entre 1945 e 1948, que o governo norte-coreano se inspirou no molde político e técnico de propaganda por meio do cinema desenvolvido pela antiga União Soviética. Através de seus filmes, os soviéticos promoviam um internacionalismo socialista do comunismo soviético-stalinista que era centrado na luta de classes e marcha para o futuro, porém a Coreia do Norte divergiu desse aspecto pregando um melodrama cheio de emocionalismo voltado para o bucolismo do campo e os valores da vida camponesa, com uma política nacionalista centrada na figura de Kim Il-sung, que dava forma a uma embalagem fortemente nacionalista e camponês-populista.
Apaixonado por filmes, Kim Il-sung escreveu a “Teoria do Cinema” da República Popular Democrática da Coreia do Norte (RPDC), onde ele afirmava que o cinema era uma importante ferramenta para educar as massas. Então, apesar de os filmes envolverem ficção científica, ação e comédia romântica, todos carregavam a imagem de que a família Kim era forte e destemida por sua luta contra contra seus inimigos: a Coreia do Sul e os Estados Unidos.
Apesar de seus esforços, a Coreia do Norte nunca conseguiu alcançar o progresso tecnológico e de mercado da indústria cinematográfica da Coreia do Sul – que é a maior de toda a Ásia. O regime extremamente fechado do país norte-coreano nunca permitiu qualquer colaboração ou patrocínio de artistas e profissionais estrangeiros, à exceção da comédia romântica Comrade Kim Goes Flying, de 2012, cuja coprodução foi feita com parceiros ocidentais.
Assim que Kim Jong-il assumiu o cargo de líder do país, esse avanço todo da indústria sul-coreana lhe causou revolta e inveja, então ele ordenou que agentes do governo sequestrassem a atriz sul-coreana Choi Eun-hee e seu ex-marido, o produtor e diretor sul-coreano Shin Sang-ok, para que ajudassem a estabelecer uma espécie de Hollywood norte-coreana.
Entre 1960 e 1970, Choi era considerada a maior estrela do cinema sul-coreano, tendo atuado em 130 filmes, incluindo A Flower in Hell e The Houseguest and My Mother, ambos dirigidos por Shin.
Em janeiro de 1978, o governo de Kim Jong-il enviou o agente secreto Wang Dong-il para se passar por um produtor chinês e fazer um convite irrecusável a Choi: dirigir um filme e uma escola de artes em Hong Kong.
Naquela época, a carreira de Choi estava em baixa por causa de sua separação e da iminente falência da produtora Shin Films, que ameaçava destruir o projeto de sua vida: a Escola de Artes Dramáticas Anyang, que possuía mais de 700 estudantes. Sendo assim, ela imediatamente aceitou o falso convite.
Em 22 de janeiro daquele ano, Choi foi levada em um voo particular de Repulse Bay, uma baía de Hong Kong, até o porto de Nampo, na Coreia do Norte. Sem saber o motivo de estar lá, ela foi instruída sobre a vida da família Kim e os costumes norte-coreanos, além de como funcionava a indústria de filmes do país.
Kim Jong-il em pessoa a levou para assistir a filmes, óperas e festas por toda a Coreia, enquanto pedia a opinião sincera dela sobre vários aspectos da indústria norte-coreana. Levou 5 anos para que Choi descobrisse que tinha sido raptada a fim de atrair atenção de Shin.
Shin começou a procurar por Choi assim que ela desapareceu. A mídia sul-coreana e a polícia chegaram a suspeitar dele, porém não havia provas que o conectassem ao sumiço da atriz. Viajando muito, o diretor ainda estava lidando com o processo de falência de sua produtora de filmes depois de ter as licenças revogadas pelo governo repressivo da Coreia do Sul.
Após 6 meses do sequestro de Choi, foi a vez de Shin ser raptado pelos agentes norte-coreanos durante uma viagem a Hong Kong. Depois de duas tentativas de fuga, ele foi então enviado para uma prisão por desobediência, onde permaneceu por 5 anos.
Em 23 de fevereiro de 1983, Shin foi libertado após muita reeducação ideológica e, em 7 de março, se reuniu pela primeira vez com Choi em uma festa organizada por Kim Jong-il, onde ele finalmente descobriu toda a história. Eles se casaram novamente por ordens do líder e sob a ameaça de serem enviados para os campos de concentração do país.
Quando a Coreia do Norte foi acusada de sequestro, as autoridades fizeram o casal gravar áudios negando tudo e informando que estavam no país por vontade própria. Em risíveis tentativas de criar uma nova Hollywood, a partir de 1983, Shin dirigiu 7 filmes no país com o líder ditador como produtor-executivo. O filme mais conhecido é Pulgasari, uma espécie de Godzilla norte-coreano.
No final das contas, Choi serviu apenas como uma isca. Viveu à sombra de déspotas e sob as ordens de homens dominadores que a desprezavam e só a procuravam para se valerem de sua imensa popularidade para o próprio ganho político. Foi assim nas duas Coreias e ao longo de toda a sua carreira cinematográfica.
Após 8 anos de sequestro, em 1986, o casal recebeu a permissão do líder norte-coreano para viajar a Viena, na Áustria, para um festival de cinema, sob a premissa de promover o último filme produzido pela Coreia do Norte. Eles conseguiram escapar até a embaixada dos Estados Unidos, onde encontraram asilo político após relatarem o sequestro e a perseguição.
Ambos viveram secretamente por 2 anos em Reston, no estado de Virgínia (EUA), sob proteção norte-americana, até que estivessem seguros para seguir com suas vidas. Quando as declarações dos anos de sequestro de Choi e Shin vieram a público no mundo todo, a Coreia do Norte alegou que o casal foi para o país voluntariamente e só fugiu de lá porque estava tentando desviar uma fortuna da produção de um filme.
Shin seguiu sua carreira cinematográfica na América do Norte fazendo mais alguns filmes e faleceu aos 79 anos na Coreia do Sul, em 2006. Choi não atuou mais, porém seguiu recebendo prêmios e honrarias por sua contribuição para a indústria cinematográfica sul-coreana. Até a sua morte, em 2018, aos 91 anos, a atriz ainda sofria com pesadelos de que estava sendo perseguida pelos agentes norte-coreanos.