Ciência
12/10/2022 às 04:00•3 min de leitura
Lançado em 1922 pelo cineasta dinamarquês Benjamin Christensen, Häxan — A Feitiçaria Através dos Tempos é uma obra atemporal do terror que serviu como padrão para várias produções clássicas do gênero. O longa-metragem mudo e em preto e branco até hoje é lembrado pelos entusiastas da categoria e segue em listas selecionadas como um dos filmes mais assustadores da história. Mas por que será que ele mantém essa marca 100 anos depois?
Parte ensaio documental, parte quadro de horror satírico, Häxan é um filme episódico no estilo antologia, onde sete capítulos exploram uma variedade de temas inspirados em crenças e no folclore da história ocidental do ocultismo. Suas tramas destacam assuntos resgatados da Idade Média e discutem acerca de bruxaria e da perseguição de mulheres acusadas de práticas de magia negra — porém com uma atmosfera estranha e elementos misteriosos baseados na superstição.
Segundo Christensen (1879-1959), o projeto é inspirado no Malleus Maleficarum, um guia alemão escrito pelo clérigo Heinrich Kramer no século XV, onde são fornecidas informações sobre como lidar com preocupações diabólicas, doenças mentais e uma consequente histeria. Para isso, ele utiliza dados históricos reais com processos de filmagem — vinhetas, iluminação, trilha sonora, montagem — para oferecer um drama visceral e perturbador.
Muito além do que é exibido na tela, Häxan é um filme impactante onde cada cena é apresentada com violência em todas suas nuances. O uso de efeitos práticos e de técnicas de puro brio visual se relacionam constantemente com o cenário oculto, apostando em uma demonstração de um mal onde parece não haver limites. Os capítulos consistem em curtos projetos que abordam pessoas brincando com demônios a sacrifícios de crianças — tudo em meio a cenas bizarras predominantes pelo belo e pelo grotesco.
(Fonte: BBC / Reprodução)
"É uma experiência visceral disfarçada de tese erudita", comenta Stephen Volk, roteirista do infame Ghostwatch, documentário de horror lançado pela BBC em 1992. "Não acredito nem por um momento que o verdadeiro motivo do diretor tenha sido outra coisa senão chocar, se não abalar o público da complacência, como faz o bom horror. Mas com este, você quase pode acreditar nisso. Há algo sobre o formato que faz isso com você — a autenticidade de uma era anterior, suponho."
Em certas cenas, Christensen emprega técnicas de stop-motion e maquiagem para recriar figuras do misticismo europeu em suas formas mais cruas. Assim, bruxas em vassouras, por exemplo, rapidamente ganham vida e atuam em contextos praticamente blasfemos, incluídas em cerimônias heréticas, punições visualmente agressivas e propostas satânicas que não apenas incomodam por certos instantes, mas perturbam.
A obra foi o filme mudo escandinavo mais caro já realizado e custou cerca de dois milhões de coroas suecas (cerca de R$ 950 mil, em cotação atual). E com otimismo após o longa ter sido aclamado na Dinamarca e Suécia, os produtores não esperavam o que viria depois, com o início das exibições internacionais. Nos Estados Unidos e no oeste Europeu, a obra foi fortemente censurada pelo seu conteúdo gráfico e ganhou o status de "amaldiçoado".
Considerado por muitos fãs como melhor trabalho de Christensen, Häxan — A Feitiçaria Através dos Tempos não deixou de se envolver com muitas polêmicas. "Impróprio para exibição pública" e repleto de "horror não adulterado", de acordo com uma matéria escrita em 1923 por revisores da Variety, o longa-metragem chocou mesmo após seu relançamento dinamarquês, em 1941, por meio de uma versão estendida com alterações nos intertítulos e comentários do diretor.
(Fonte: BBC / Reprodução)
O projeto, classificado com uma nota 91% dos críticos no Rotten Tomatoes, tornou-se um tabu por explorar a psiquê humana de forma deslavada. Dotado de uma melancolia quase insuportável, ele se contrói em torno de ideias comportamentais baseadas nos transtornos humanos e explora um forte potencial dramático, mas sem tratar essa violência gráfica puramente como um voyeurismo ou apelo visual.
"O próprio conceito é tão moderno", conclui Volk. "Honestamente, não consigo ver por que não é tão celebrado pelos historiadores do cinema quanto Vampyr (1931) ou Nosferatu, de Carl T. Dreyer. Eu certamente diria que foi o documentário falso seminal que precedeu todos os outros. Foi perdido, depois encontrado por aficionados do horror, sendo inserido na vanguarda do terror clássico de filmagem encontrada no sentido mais literal."
A antologia medieval inspirou os cineastas americanos Eduardo Sánchez e Daniel Myrick a fundar a Häxan Films e, consequentemente, produzir o icônico A Bruxa de Blair (1999). Ambos os filmes compartilham temas ocultos e um estilo quase documental, com a diferença que o terror sobrenatural da década de 1990 busca mostrar "filmagens encontradas" reais — found footage.
Assim, apesar de sua proposta conceitual e com uma forte base gráfica em preto e branco, o filme mudo de Benjamin Christensen se torna único pelo ideal ensaísta. A dor e a angústia humana retratadas são as mesmas, independentemente do que esteja acontecendo e contribuem para uma força terrivelmente palpável capaz de impactar e apavorar até mesmo os mais céticos.