Ciência
11/03/2023 às 05:00•3 min de leitura
Foi em uma tarde de meados de 1386, na antiga cidade normanda de Falaise, que uma multidão se vestiu com suas melhores roupas para testemunhar a execução de um assassino condenado: um porco, condenado por “se entregar à propensão maligna de comer bebês na rua”. Retratado em um afresco que existiu por mais de 400 anos até sua destruição em 1820, o animal foi mutilado na cabeça e nas patas dianteiras antes de ser enforcado.
Esse tipo de julgamento constituiu vários sistemas jurídicos do século XV até o século XVIII, quando todos os tipos de animais foram julgados como seres humanos, condenados e mortos em tribunais seculares e da Igreja, como consequência de atos de assassinato, danos criminais e até mesmo bruxaria.
Mas houve bizarrices ainda maiores antes daquela época, como o Sínodo do Cadáver, quando o papa Formoso foi retirado de sua sepultura para ser julgado em um tribunal.
Papa Formoso. (Fonte: Ripleys/Reprodução)
Para entender um dos episódios mais absurdos da história romana, é preciso voltar em 891 d.C., no dia em que Formoso foi eleito papa, cargo que ocupou até sua morte por derrame – embora alguns suspeitem envenenamento –, em 4 de abril de 896 d.C.
Durante seu mandato, Formoso reuniu uma legião de inimigos nos altos escalões do poder em Constantinopla, no Sacro Império Romano, na Itália e na própria Igreja – por isso os historiadores têm tudo para acreditar na possibilidade de ele ter sido envenenado.
Por outro lado, o papa foi amado pelo povo, tanto que, quando morreu, tumultos incontroláveis pelas ruas de Roma levaram a pisoteamentos e euforia. Em uma tentativa de conter a agitação, a Igreja nomeou rapidamente Bonifácio VI como o novo papa. No entanto, seu reinado durou apenas duas semanas, terminando com sua morte, por gota ou envenenamento, tendo uma passagem considerada nula e sem efeito. Foi assim que Estêvão VI ascendeu ao trono.
(Fonte: Britannica/Reprodução)
O papa Estêvão VI nutria um ódio imenso por Formoso devido a um conflito entre facções rivais que começou quando o ex-papa escolheu o rei franco oriental Arnulfo da Caríntia como imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Naquela época, a Igreja ocidental atravessava uma de suas maiores crises, e havia uma divisão em Roma pelas facções lideradas por aristocratas romanos e governantes de Nápoles, Benevento, Toscana e Espoleto – de cuja família governante Estêvão era membro.
Em 891 d.C., Guy, duque de Espoleto, foi relutantemente coroado imperador do Sacro Império pelo papa Estêvão V, e o filho de Guy, Lamberto, coroado coimperador pelo papa Formoso. Antes de morrer, Formoso abandonou os espoletanos, passados para trás até que Estêvão ascendeu como papa após a morte precoce de Bonifácio, colocando o partido espoletano no controle de Roma.
As ondas de imigrantes se instalando na atual Hungria e Bulgária, aumentando as tensões entre Constantinopla e Roma, levantaram questões importantes sobre as qualidades exigidas dos líderes da cristandade. Durante esse período, o equivalente medieval do impeachment foi usado com frequência como forma de afirmação de poder.
Papa Estêvão VI. (Fonte: Wikipedia/Reprodução)
Isso foi usado pelo papa Estêvão para justificar a retirada do cadáver do papa Formoso da sepultura para ser colocado em julgamento, com ele alegando que, mesmo quando os líderes deixassem o papado, poderiam ser punidos por suas infrações. Mas todos sabiam, no entanto, que sua motivação tinha mais a ver com o ódio que nutria contra o falecido papa por sua traição do que por qualquer senso de justiça.
O Sínodo do Cadáver, também conhecido como Julgamento do Cadáver, aconteceu em janeiro de 897 d.C., na Basílica de São João de Latrão, em Roma. O cadáver de Formoso foi exumado, vestido em toda sua elegância com vestes papais e colocado em um trono, onde enfrentou as acusações de perjúrio, por quebrar o juramento de não retornar a Roma, e obter ilegalmente o título de papa por já ser bispo na época em que foi eleito.
Um diácono representou o cadáver em decomposição de Formoso que, obviamente, foi considerado culpado, teve suas vestes papais arrancadas de sua ossada, os três dedos da mão direita que usava para abençoar, cortados; e seu cadáver nu foi jogado na sepultura de um plebeu como indigente. Alguns dias depois, o cadáver foi removido do local e lançado no rio Tibre, onde se perdeu para sempre.