Ciência
12/04/2023 às 02:00•2 min de leitura
Como tantas outras pessoas neste mundo, John Wycliffe foi condenado à pena capital — ele deveria morrer pelos seus crimes. O curioso é que decidiram fazer isso 15 anos depois que o cara já tinha morrido. Bem que dizem que "a justiça tarda, mas não falha"...
Outro detalhe curioso é o motivo da condenação: traduzir a Bíblia para o inglês. Não que uma pessoa morrer a mando da Igreja fosse raro naquela época (século XV). A questão é que traduzir o livro sagrado do cristianismo para qualquer outro idioma que não o latim era um crime gravíssimo para a Igreja Católica.
E Wycliffe não apenas foi condenado, como também torturado depois de morto — seus restos foram exumados, queimados e jogados em um rio.
Depois que a gente descobre essa condenação à morte após a morte, o motivo se torna um mero detalhe, né? Mas para entender como essa cronologia bizarra foi possível, precisamos entender um pouco mais sobre o contexto da época e o trabalho de John Wycliffe.
A chamada "Bíblia de Wycliffe" foi a primeira tradução completa do livro sagrado para a língua inglesa. Mas também foi uma maneira para esse filósofo e teólogo inglês mostrar sua opinião sobre a própria Igreja — que, para ele, estava muito distante daquela Igreja descrita na Bíblia.
Ele discordava, por exemplo, da enorme desigualdade de riqueza entre a Igreja e a população da época. A própria tradução da Bíblia era uma forma de tornar os textos mais acessíveis para as pessoas comuns, que não sabiam latim.
Além disso, ele acreditava em uma vida religiosa mais comunitária, onde os aspectos comuns eram mais importantes que as questões individuais. Wycliffe também questionava a doutrina sobre o pão e o vinho serem transformados no corpo e no sangue de Cristo — que é a base do rito da comunhão, existente até hoje. Negar isso retirava bastante poder do clero e era bastante radical na visão do catolicismo da época.
Então, além de tradutor da Bíblia, John Wycliffe era um grande questionador — e suas ideias inspiraram os movimentos dissidentes que iriam reformar o cristianismo nos séculos seguintes. Aliás, todas essas ideias foram escritas, divulgadas e debatidas em inglês.
A exumação e condeção à morte post mortem de Wycliffe. (Fonte: World History)
Mas é claro que John Wycliffe não foi um "lobo solitário" nessa luta. Suas ideias faziam parte de um contexto histórico com muitos fatores.
Era a época da peste bubônica, que estimulou questionamentos acerca da vida em sociedade e de como ser um bom cristão. Além disso, a Igreja Católica estava perdida em disputas internas, em épocas onde chegaram a existir três papas simultaneamente, além do Papado de Avignon — quando a sede da Igreja foi transferida para a França. Como os ingleses estavam na Guerra dos 100 anos contra a França, fazia ainda mais sentido questionar uma autoridade sediada em território inimigo.
Wycliffe morreu em 1384 sem ser condenado. Entretanto, suas ideias continuaram circulando e conquistaram muitos seguidores — que ficaram conhecidos como lollars. Posteriormente, essa "rebeldia" do filósofo inglês seria considerada uma das principais inspirações para a Reforma Protestante, que rachou o cristianismo de vez.
Antes disso, em 1414, a Igreja Católica tentou resolver a questão com o Concílio de Constança. E uma das principais medidas foi atacar com força total quem ousasse questionar a autoridade do papado. Por isso, filósofos que seguiam Wycliffe — como o tcheco Jan Hus — foram mortos, os lollars começaram a ser perseguidos e o próprio Wycliffe foi condenado à morte por heresia, ainda que já estivesse morto há cerca de 30 anos.