Artes/cultura
26/09/2023 às 14:00•4 min de leitura
Em meados da década de 1960 e 1970, quando o governo brasileiro lançou programas de desenvolvimento e incentivou a migração para a região da Amazônia, fazendeiros, madeireiros e empresas agropecuárias viram oportunidades econômicas na região devido à vasta extensão de terras e recursos naturais.
Um dos problemas dessa exploração é que o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de países com maiores fronteiras internacionais, com 16,885 km, portanto, as políticas públicas muitas vezes não são capazes de monitorar ou frear as questões que surgem nessas faixas territoriais “abandonadas”. Foi assim no final do século passado e é até hoje.
Isso propiciou um alto índice de narcotráfico, contrabando de mercadorias, como armas e carros, e aumento nos casos de violência. A falta de desenvolvimento social nessas regiões gera conflitos com comunidades indígenas e quilombolas, bem como sérios problemas ambientais, como o desmatamento e a degradação florestal.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Portanto, o que aconteceu ao jornalista britânico Dom Phillips e ao indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira em 5 de junho de 2020 é a crônica mais antiga da História do Brasil. Dom e Bruno desapareceram na região do vale do Javari, na Amazônia, após serem capturados pelo sistema de pesca e caça ilegais. Após serem executados a tiros, eles tiveram seus corpos queimados e enterrados.
Os dois faziam uma expedição para investigar os crimes cometidos pelos invasores do território indígena, sendo que Phillips escrevia um livro para compreender a autodefesa dos Vigilantes do Javari, um trabalho idealizado por Bruno.
Ou seja, o tempo que criminosos estão explorando os limites fronteiriços do Brasil é o mesmo que pessoas estão perdendo suas vidas para tentar defender essas regiões.
Essa é a história da ativista americana Dorothy Stang e de como o Brasil mais mata ambientalistas no mundo.
Dorothy Stang. (Fonte: CNBB/Reprodução)
Depois do acreano Chico Mendes, símbolo da luta ambientalista na preservação da Amazônia, assassinado pelos donos de terras opositores à sua luta em 1988, existiu Dorothy Stang. Nascida em 7 de junho de 1931, em Dayton, Ohio, seu sonho sempre foi dedicar sua vida a Deus, por isso professou seus votos perpétuos aos 17 anos para se tornar missionária, entrando para a comunidade das Irmãs de Notre Dame de Namur.
A princípio, o desejo mais profundo de Stang era servir aos pobres como missionária na China, mas seus planos mudaram e ela acabou indo parar no Brasil em meados de 1966. Seu trabalho começou em Coroatá, no Maranhão, ajudando agricultores pobres a construírem futuros para suas famílias.
A década de 1970 foi considerada o ponto de virada na vida da missionária por se tratar de uma época em que as tensões na região amazônica começaram a crescer — tudo devido à popularização dos ricos recursos naturais da floresta.
Stang migrou para a região do Xingu bem quando acontecia a inauguração da Rodovia Transamazônica pelo governo de Emílio Médici, no apogeu da ditadura militar brasileira e da expansão ufanista do Brasil.
Rodovia Transamazônica. (Fonte: GettyImages/Reprodução)
Stang viu indo por água abaixo seus projetos de proteção à floresta, a minimização dos conflitos fundiários da região e o trabalho como defensora dos pobres rurais, que eram ajudados a ganhar a vida cultivando pequenos lotes e extraindo produtos florestais sem desmatamento.
O governo Médici não apenas disse “Olhe, temos muitos recursos e não são protegidos”, como também incentivou conflitos nessa áreas ao distribuir terras públicas às margens de sua rodovia recém-inaugurada. Em alguns pontos ao longo dela, até houve apoio à instalação de pequenos agricultores, mas na região de Anapu, no estado do Pará, apenas fazendeiros e empresários do setor da madeira foram privilegiados. A maioria deles, no entanto, extraiu os recursos naturais desses pedaços de terra e os abandonou ou repassou a terceiros. Diante disso, pequenos agricultores começaram a reivindicar terras na região e Stang decidiu agir para ajudá-los a se organizarem melhor politicamente.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Frustrada em testemunhar a destruição da floresta Amazônica e as pessoas saqueadas por operações ilegais, a missionária se tornou a principal ativista da Amazônia, indo contra líderes políticos que fingiam que não viam o que estava acontecendo.
Na década de 1990, Stang começou o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), se tornando uma das primeiras pessoas a defender publicamente que as terras públicas deveriam ser destinadas à reforma agrária. Em 2002, o governo federal reconheceu alguns direitos dos pequenos agricultores, após muita insistência. Foram criados oficialmente dois PDSs: o Esperança e o Virola-Jatobá. Foi determinado neles que cada família teria o direito a 20 hectares de terra e o resto do território seria destinado a uso coletivo, desde que a mata permanecesse preservada.
Essa decisão causou revolta entre madeireiros e pecuaristas. A essa altura, o nome de Stang já figurava no topo da "lista da morte" criada pelos corretores de poder das regiões em conflito. É bem provável que a mulher já soubesse que seus dias estavam contados, ainda assim ela não parou. Stang continuou com seu ativismo, colocando em prática programas que criavam comunidades autossuficientes de pessoas comprometidas com sua própria independência, bem como com o sustento da floresta tropical.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Stang pediu repetidamente ao governo municipal, estadual e nacional proteção para essas pessoas que estavam em áreas vulneráveis a ataques dos madeireiros e pecuaristas que não aceitavam a criação das unidades, mas nunca foi ouvida. Até que em 12 de fevereiro de 2005, Dorothy Stang, aos 73 anos, foi assassinada com seis tiros, sendo um deles na cabeça, em uma estrada de terra no assentamento Boa Esperança, em uma área rural no Pará.
O crime foi executado por dois pistoleiros de aluguel contratados pelos fazendeiros Vitalmiro Bastos e Regivaldo Galvão, que reivindicavam áreas que poderiam ser incorporadas pelo PDS Esperança.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Desde que o sangue de Dorothy Stang foi derramado, a situação na região não teve uma melhora sequer e as mortes de Dom e Bruno apenas confirmam esse cenário. Inclusive, eles não são os únicos — na verdade, são apenas os responsáveis por lançar novamente luz ao mesmo problema, como Mendes e Stang fizeram no passado.
Nos últimos cinco anos, 19 pessoas foram assassinadas por advogarem sobre a disputa fundiária na região de Anapu. O último nome a ser gravado em uma cruz localizada ao lado do túmulo de Stang foi o de Paulo Anacleto, que era perseguido e ameaçado desde 2017. Antes dele, teve Márcio Rodrigues dos Reis, executado em dezembro de 2019, e Marciano dos Santos, em fevereiro do mesmo ano. A luta e a morte deles seguem apagadas e sem resolução.
“Matam gente direto e ninguém vai preso. Virou uma coisa desordenada”, desabafou um familiar de Anacleto em matéria ao Repórter Brasil.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Nos últimos 10 anos, mais de 2 mil ambientalistas foram assassinados em todo o mundo. Em 2022, de acordo com um relatório divulgado pelo Global Witness, uma organização sem fins lucrativos dedicada aos direitos humanos e às questões ambientais, ocorreu um assassinato a cada dois dias.
Para Gabriella Bianchini, consultora da Global Witness, os governos regionais deveriam estar agindo para criar um ambiente seguro para os ambientalistas atuarem e para preservar um espaço cívico propício ao seu trabalho.
A América Latina figura como a região mais perigosa para defensores do meio ambiente, com cerca de 9 em cada 10 assassinatos registrados em 2022. O Brasil se encontra na segunda posição como o país mais letal para ambientalistas.