Estilo de vida
08/09/2024 às 18:00•4 min de leituraAtualizado em 08/09/2024 às 18:00
O apartheid foi um extermínio, acima de tudo. Em 4 de junho de 1948, o pastor branco protestante Daniel François Malan ascendeu ao cargo de primeiro-ministro da África do Sul pelo Partido Nacional da África do Sul. Com um posicionamento supremacista, ele se juntou a líderes políticos e legisladores que representavam a população branca sul-africana da época para desenvolver um aparato estratégico que garantiria que mantivessem o controle sob as terras mais férteis, os recursos naturais e as indústrias econômicas.
Para isso, criaram estratégias para impedir que negros participassem do processo político, negando o direito ao voto e limitando sua participação a espaços governamentais. Esse ostracismo foi também cimentado por ideologias eugenistas que enfatizavam que a mistura racial era uma mescla espúria que levaria não só à diluição da identidade branca, como à perda do controle político e econômico, portanto, foi forte e violentamente coibida. A separação e autonomia racial eram consideradas essenciais para a preservação da identidade cultural e nacional dos brancos sul-africanos.
Dessa forma, foi criada e implementada a política do apartheid com leis que segregavam a população com base na raça, determinando rigidamente onde as pessoas negras podiam viver, trabalhar, estudar e socializar. O aparato de repressão se aprimorou também em apagar fisicamente os negros, que foram caçados, torturados e mortos até o final da política, em 1994. A Comissão da Verdade e Reconciliação descobriu que houve 21 mil mortes por violência política na África do Sul, com 22 mil feridos no período de transição entre 1990 e 1994.
O massacre de Sharpeville de 1960 foi um exemplo de como o sistema branco no poder visava destruir os negros, tanto quanto a declaração de Louis Van Schoor, conhecido como o Assassino do Apartheid, que foi apoiado pela polícia local para cometer uma série de homicídios contra pessoas pretas.
Não há registros sobre a vida pregressa de Van Schoor, até porque os horrores que cometeu estão intrinsecamente associados a toda a construção ideológica do apartheid. Na década de 1980, o homem era apenas um guarda de segurança de East London, uma cidade no Cabo Oriental da África do Sul, contratado para proteger dos negros as empresas de propriedade dos brancos, como escolas e restaurantes.
Ao longo de 3 anos, entre 1986 e 1989, Van Schoor fez 39 vítimas, todas negras, sendo a mais nova uma criança de apenas 12 anos. Ele afirmou que todos que atirou e matou eram "criminosos" que pegou em flagrante invadindo prédios ou espaços de propriedade dos brancos, e que teve aval da polícia da época para cometer seus crimes.
Van Schoor não chamava suas vítimas de "pequenos criminosos" à toa, a própria política do apartheid havia definido dessa forma os negros que tentavam sobreviver de alguma. Desesperados, eles vasculhavam lixeiras e roubavam comidas de restaurantes e supermercados.
As leis de segregação davam a qualquer tipo de pessoa branca o direito de usar força letal contra os denominados “intrusos negros”, caso resistissem à prisão ou fugissem após serem pegos. Foi sobre isso que Van Schoor se apoiou para justificar seus crimes.
Dessa forma, a imagem de um homem barbudo, apelidado de "bigodes", que desaparecia com quem cruzasse seu caminho durante à noite, espalhou terror pela comunidade negra de East London.
Van Schoor foi preso em 1991, durante o epicentro de transformação da África do Sul do regime do apartheid para um sistema democrático inclusivo, que aconteceu com a libertação de Nelson Mandela da prisão.
O julgamento do Assassino do Apartheid foi um dos maiores envolvendo assassinato da história da África do Sul, com dezenas de testemunhas e milhares de arquivos de evidências forenses, atraindo atenção de toda a mídia. O problema é que o julgamento aconteceu ainda sob grande parte do aparato de segregação que estava em vigor no judiciário, portanto, apesar de ter matado 39 pessoas, o homem foi condenado por apenas 7 crimes.
Seus assassinatos foram classificados como "homicídios justificáveis" pela polícia, com base no direito à força letal contra "intrusos negros". Ao Serviço Mundial da BBC, a jornalista e cineasta Isa Jacobson passou anos investigando tudo o que existe sobre o caso de Van Schoor e revelou que é surpreendente que um tribunal permitiu que o homem saísse impune, considerando a maneira básica como as provas contradiziam as falas dele.
Nos autos do processo, Jacobson encontrou vários depoimentos de testemunhas que foram feridas por Van Schoor, mas sobreviveram, comprovando que elas não estavam fugindo dele quando foram abordadas.
Assim foi o caso de 11 de julho de 1988, quando o segurança atirou em um menino de 14 anos que havia invadido um restaurante em busca de comida. A criança disse à polícia que se escondeu no banheiro quando viu Van Schoor, que o chamou calmamente e pediu para que encostasse à parede, então disparou vários tiros em sua direção. Apesar de ter sobrevivido aos ferimentos e testemunhado contra o homem, o juiz o definiu como “não confiável”.
Foi assim com todos os testemunhos dos jovens e meninos negros agredidos, baleados e perseguidos por Van Schoor. O juiz rejeitou seus relatos porque não eram testemunhas "sofisticadas". Uma vez que não há julgamentos com júri na África do Sul, a opinião do magistrado é final.
O apoio ao criminoso pela comunidade branca do país foi massivo, a ponto de empresários fabricarem e distribuírem material de divulgação a favor de Van Schoor, com frases do tipo “Eu amo Louis” impressas em adesivos.
Se o sistema legal não estivesse contaminado pelo racismo tanto quanto a sociedade daquela época, Van Schoor nunca teria saído impune. O assassino alegou que nunca saiu com a intenção de matar negros, mas admitiu que achava "extremamente emocionante" persegui-los no escuro. Apesar disso, ele afirmou que não era racista, embora tenha passado 12 anos trabalhando na força policial em East London com cães usados para rastrear e capturar manifestantes e criminosos – quase todos negros.
Louis Van Schoor foi condenado a mais de 90 anos de prisão no final do seu julgamento com o pouco de acusações que o juiz considerou, sendo que ainda lhe foi concebido o direito de cumprir a pena simultaneamente. Em 2004, ele foi solto em liberdade condicional, antes do que deveria, assim como uma grande leva de criminosos brancos da segregação.
Em 26 de julho de 2024, o Assassino do Apartheid morreu, aos 72 anos, devido a complicações de sepse. Seus crimes continuam impunes, tanto quanto muitas vítimas da era do apartheid estão desaparecidas.
“Nós merecemos justiça. Não temos nada até hoje, e a dor ainda é a mesma”, reclamou Marlene Mvumbi, cujo irmão Edward foi morto por Van Schoor em 1986.