Saúde/bem-estar
01/04/2024 às 15:08•7 min de leituraAtualizado em 01/04/2024 às 15:20
A antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz disse que existe um desejo do brasileiro em ver a ditadura militar como uma utopia que melhoraria a economia, estabilidade e a segurança. Segundo ela, isso acontece porque o brasileiro tem "uma mania de projetar a responsabilidade por suas desgraças", e um governo militar é a melhor maneira de fazer isso. Afinal, o autoritarismo e a falsa sensação de distância cimentam perfeitamente a necessidade em se eximir da culpa.
Em uma entrevista à BBC News, em 2018, o especialista em estudos sobre a ditadura militar, Carlos Fico explicou que negar a ditadura é uma idiotice sem tamanho.
“O que acho mais significativo, em termos da sociedade brasileira, é que muita gente diz que, naquele tempo, as coisas eram melhores. Não negam que houve uma ditadura, ao contrário, dizem que era até melhor”, comentou ele ao jornal. “Isso acontece porque a memória que se construiu no Brasil sobre a ditadura não é uma memória traumática como foi, por exemplo, na Argentina. Lá, a repressão foi muito visível. Pessoas eram mortas nas ruas, às vistas de todos”.
Carlos Fico ainda completa que o problema da Lei da Anistia é que ela não deu uma grande visibilidade à repressão e, uma vez que não houve essa memória traumática da ditadura, somou-se à longa tradição brasileira de conciliação que existe na nossa política. O fato de os militares e civis que violaram os direitos humanos nunca terem sido julgados tornou o fim da ditadura militar uma transição macia, praticamente inconclusa, como se o período não tivesse existido – ou pior, não tivesse sido tão ruim.
Nesses 60 anos do Golpe, essas são as 4 datas mais marcantes da história da Ditadura Militar no Brasil.
Na terça-feira de 31 de março de 1964, a Quarta República (1946-1964), sob a gestão de João Goulart, foi desmantelada quando as Forças Armadas enviaram tanques e tropas para o Rio de Janeiro, não apenas como forma de demonstrar a força militar, mas também para assegurar algum tipo de resistência por parte dos apoiadores de Jango. Ali concretizava-se o golpe militar, após um período de grande agitação política em que foi estabelecida a ideia por parte dos setores conservadores da sociedade de que o alinhamento político do então presidente estava carregado de um cunho socialista ou comunista.
Isso foi parte de um aparato desenvolvido pelos Estados Unidos sobre os países da América Latina, temendo uma suposta expansão das ideias consideradas comunistas, visto que seu embate era cada vez maior contra a então União Soviética.
Assim que Jango partiu para seu exílio no Uruguai e uma Junta Militar, autodenominada Comando Supremo da Revolução, assumiu o poder do país, em 9 de abril de 1964, foi implementado o AI-1, o primeiro decreto-lei de uma série de Atos Institucionais que serviram para legitimar de todas as maneiras o aparato da ditadura.
Descrito pelos juristas Carlos Medeiros da Silva e Franciso Campos, o AI-1 foi responsável por empossar ilegalmente o militar Humberto de Alencar Castelo Branco como presidente por meio de eleições indiretas. O ato também garantiu que o Governo Militar estabelecesse uma série de ações que caracterizaram a transição do Brasil para um Estado autoritário, como a suspensão dos direitos do Judiciário, a concessão aos militares de cassar mandatos de deputados, a suspensão dos direitos políticos por até 10 anos e o afastamento de servidores públicos que fossem considerados "uma ameaça à segurança nacional".
Em 2013, a Comissão da Verdade confirmou que a ratificação do AI-1 permitiu que 50 mil pessoas fossem detidas só no ano do Golpe, dos quais 600 ficaram em navios da Marinha e estádios de futebol, que serviram como centros de detenção temporários. Essas pessoas eram de sargentos a sindicalistas, que foram vítimas da denominada Operação Limpeza, perseguidos pelas Comissões Especiais de Inquérito e de Inquéritos Policiais Militares (os famosos IPMS), responsáveis por expurgos na administração pública baseados em um completo desprezo pelas regras da Justiça.
As historiadoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling estimam que 4.841 pessoas perderam seus direitos políticos ou foram cassadas, aposentadas ou demitidas só pelas regras do AI-1, que teve como alvo 2.990 cidadãos. Nos quartéis, os expurgos do IPMS lançaram para a reserva cerca de 1.313 militares.
Mas esse era só o começo da ditadura.
Às 18h, uma quinta-feira, de 28 de março de 1968, cerca de 25 policiais militares invadiram o restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro, onde jantavam 300 alunos no momento. O intuito da blitz era coibir qualquer sinal de protesto de alguns estudantes que reivindicavam a aceleração e o término das obras do local, além de melhores condições de higiene, a garantia de uma alimentação com qualidade e, principalmente, que todos os estudantes pudessem ter acesso ao restaurante.
No ano anterior, o estabelecimento havia sido demolido para dar lugar a um trecho rodoviário no Aterro do Flamengo e, por isso, passou a ser reconstruído em outro local. Depois que reabriu, o Calabouço estava inacabado a ponto de estar com chão de terra, e em vez de tomarem providências, as autoridades se mobilizaram em selecionar os usuários a fim de evitar que "elementos estranhos" se infiltrassem nas dependências do restaurante.
Para desarticular o protesto, os policiais efetuaram disparos contra os jovens, e um deles atingiu em cheio o peito do estudante secundarista Edson Luís Lima Souto, de apenas 18 anos. Natural de Belém, no Pará, Edson era extremamente pobre e estava em busca de uma vida melhor no Rio. Estudante do Instituto Cooperativa de Ensino, ao lado do Calabouço, ele fazia bicos de faxineiro e também dormia no local. Ele foi morto defendendo o local, que era a única casa que conhecia nos dois meses que estava na cidade.
Os estudantes não permitiram que os policiais conduzissem o corpo de Edson para o Instituto Médico-Legal (IML), então o levaram para a Santa Casa de Misericórdia. Ao ser confirmada a morte de Edson, seu corpo foi encaminhado para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ali começava o capítulo de maior expressão social na história da ditadura militar brasileira – e também o pior.
O assassinato de Edson Luiz causou um furor popular que a ditadura ainda não havia testemunhado. O velório do jovem foi acompanhado por 50 mil pessoas que cantaram o hino nacional e também entoaram gritos de protesto do tipo: “Um estudante foi assassinado, poderia ser seu filho”, “Bala mata fome?” e “Os velhos no poder, os jovens no caixão”.
A missa de sétimo dia, realizada na igreja da Candelária, se transformou em uma espécie de protesto nacional, gerando prisões e mortes de outros estudantes em diferentes estados do país pelas mãos dos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e soldados da PM que procuravam dispersar e prender quem chegava para a cerimônia.
As pessoas foram cercadas e atacadas com sabes, cassetetes e gás lacrimogêneo por um efetivo de 20 mil homens do Exército, 10 mil da cavalaria da PM, 1.200 da Guarda Civil, e mais 400 detetives da Secretaria de Segurança. Dezenas de pessoas ficaram feridas, sendo que 580 foram levadas a fortaleza de Santa Cruz, em Niterói.
Após a missa de sétimo dia, o movimento estudantil inflamado recuou, em grande parte devido às medidas policiais e pelas disposições repressivas contidas na Instituição nº 177. As manifestações voltaram, no entanto, na última semana de maio, ganhando força e proporção ao longo das semanas, até 21 de junho, quando a avenida Rio Branco no Rio se tornou um campo de batalha. A participação expressiva de trabalhadores, descontentes com a política salarial do governo e a repressão que sofriam, trouxe milhares de policiais, em um confronto que deixou centenas de feridos, causou mil prisões e 28 mortos. O episódio ficou conhecido como Sexta-feira Sangrenta.
Devido à pressão internacional por ter violado direitos humanos e em uma forma de contenção de danos para passar uma falsa sensação de segurança, as autoridades militares permitiram que fosse feita uma manifestação de grande proporção que demonstraria a insatisfação pública com a ditadura.
Assim aconteceu, em 26 de junho de 1968, a Passeata dos Cem Mil, no Centro do Rio. A marcha foi acompanhada por 10 mil PMs, sob cartazes e faixas com dizeres do tipo: “O povo organizado derruba a ditadura”. A manifestação durou 3 horas e de maneira pacífica, terminando diante do palácio Tiradentes, sede da Assembleia Legislativa carioca.
Logo em seguida, os militares fizeram seu trabalho em perseguir vários estudantes, inclusive o líder da passeata, Vladimir Palmeira. À medida que cresceram as manifestações, também fez se levantar a ala mais radical do sistema e pressionar o presidente Costa e Silva a decretar um novo Ato Institucional que pudesse coibir de vez as manifestações públicas. A princípio, o chefe de Estado se recusou e até conseguiu evitar a medida, mas acabou sofrendo um "golpe dentro do golpe" quando os ministros militares da Junta Militar assumiram a Presidência da República após ele ficar doente.
A promulgação do Ato Institucional 5 (AI-5) fez o Brasil se ajoelhar de vez para a repressão absoluta. Começavam ali os "anos de chumbo" e a ascensão das casas de tortura, onde pessoas foram aprisionadas e mortas. Uma prospecção da Human Right Watch (HRW) estimou que pelo menos 20 mil pessoas foram torturadas durante a ditadura militar no Brasil.
No final de 1973, o Brasil já havia testemunhado perseguições, mortes, tortura, censura extrema e até mesmo um crescimento econômico que lançou o país, então nas mãos de Emilio Médici, para um status irreal de potência mundial. Extremamente endividado, inadimplente e sobrevivendo de empréstimos externos, o Brasil acumulava uma dívida de US$ 90 bilhões, tendo que lidar com produtos internos a preços vertiginosos de tão altos. Havia chegado a conta do milagre econômico de Médici: a economia brasileira entrou na pior crise de todos os tempos.
Nos últimos momentos da década de 1970, quando Ernesto Geisel já ditava o poder, a sociedade, então de joelhos, decidiu se erguer contra o aparato esmagador da ditadura militar diante das circunstâncias em que estavam. O Índice de Gini, responsável por medir a concentração de renda de um país, alcançou o pior nível da história no ano anterior, batendo 0,62. Isso evidenciou que a riqueza estava ainda mais nas mãos dos ricos, enquanto a camada pobre da população se precarizava econômica e socialmente.
Sendo assim, em 12 de maio de 1978, aconteceu um movimento grevista nas fábricas de caminhões da Saab-Scania, em São Bernardo do Campo, São Paulo, quando cerca de 2 mil metalúrgicos cruzaram os braços pela reivindicação de 20% de aumento salarial. Era o início do maior ciclo de greves da história do Brasil, reunindo cerca de 150 mil trabalhadores.
Em 14 anos de ditadura até aquele momento, foi a primeira vez que houve uma mobilização política e social tão forte contra o governo militar em busca da redemocratização. E no centro dessa cena, em meio a alguns líderes e porta-vozes do movimento, estava o pernambucano Luís Inácio da Silva, que ficaria conhecido como Lula, o futuro (e atual) Presidente da República.
O clima de efervescência política dominou todos os aspectos do país. Havia briga por organização partidária, por democracia, por melhores condições de trabalho, e também cada vez mais denúncias e mobilizações contra as atrocidades cometidas pelo governo de Geisel e de todos seus antecessores. Até que, diante de uma pressão imensa da população e dos movimentos contrários ao regime, em 1 de janeiro de 1979, foi revogado diversos decretos-lei, inclusive o notório AI-5.
Diante disso, concretizava-se uma famosa frase do polímata francês Gustave Le Bon: “o poder de um ditador não passa de uma ficção, disseminado entre numerosos subditadores anônimos e irresponsáveis cuja tirania e corrupção não tardam a se tornar insuportáveis”. A ditadura militar no Brasil sucumbiu oficialmente em 15 de março de 1985, quando o presidente João Baptista Figueiredo entregou o cargo.