Ciência
06/10/2020 às 05:30•8 min de leitura
A humanidade já passou por diversos momentos em que a população vivenciou a disseminação de doenças, que tomaram o cenário global. Diversas partes do mundo presenciaram epidemias que se transformaram em pandemias, desafiando a sobrevivência dos seres humanos.
Microrganismos como vírus, fungos, parasitas e bactérias estão em diversas partes do planeta — em animais, águas contaminadas, lixos e no ambiente como um todo — e podem em algum momento chegar até determinada população humana.
A pandemia surge exatamente quando esses organismos transitam entre diversos tipos de seres vivos e conseguem se produzir de maneira rápida ao ponto em que a transmissão se torne descontrolada até mesmo entre os seres humanos.
Pandemia é quando há uma disseminação mundial de uma nova doença. Os termos epidemia e surto deixam de ser usados e dão lugar a pandemia para caracterizar a transmissão sustentada de uma doença, que passa rapidamente pelos continentes.
Conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS), existem três pré-requisitos para a ocorrência de uma pandemia. O primeiro é o aparecimento de um novo vírus, ao qual a população humana tenha pouca ou quase nenhuma imunidade como defesa. O segundo é a possibilidade de o vírus replicar na humanidade e causar uma doença severa. Já o terceiro se refere à transmissão fácil de pessoa para pessoa.
O monitoramento por satélite realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou nos últimos 12 meses um aumento de 34% nos alertas de desmatamento na Amazônia.
Durante a pandemia do novo coronavírus, o bioma apresentou um aumento de 25% nos alertas de desmatamento, divulgados pelo Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) do Inpe. Somente neste ano, 6.756,73 km² da Amazônia já foram desmatados.
Conforme dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), os alertas de desmatamento tiveram um aumento de 68% em agosto, com relação ao ano passado.
Há diversos anos cientistas e ONGs avisam sobre os prejuízos que o desmatamento e a exploração da Amazônia podem causar para a população mundial. Um dos principais riscos é o surgimento de doenças e zoonoses, que podem desencadear pandemias como a do novo coronavírus.
O Greenpeace é uma organização ambiental criada há mais de 40 anos para construir um mundo mais verde e pacífico; atua em questões relacionadas à preservação do meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável, trabalhando para proteger o meio ambiente, promover a paz e engajar pessoas a transformarem suas realidades. A ONG atua em 55 países de modo ativista, global e independente e está presente no Brasil desde 1992, sem receber doações de governos, empresas ou partidos políticos, apenas de pessoas físicas.
A gestora ambiental e porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil, Cristiane Mazzetti, comenta os principais problemas que o desmatamento pode trazer para o surgimento de uma nova pandemia.
“Uma mensagem já reforçada por cientistas é que, se quisermos evitar futuras pandemias, precisamos parar a destruição do meio ambiente. Ao desmatar entramos em contato com patógenos (vírus e bactérias que podem nos causar doenças). Por exemplo, desde 1940, 31% das doenças zoonóticas (que passam de animais para humanos) tiveram suas causas na mudança do uso do solo, ou seja, desmatamento. O risco é maior em florestas tropicais que têm maior biodiversidade. É o caso de HIV, ebola e zika”, diz Cristiane.
O doutor, pesquisador e coordenador de pesquisas em Ecologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Adalberto Luis Val, explica a possibilidade de migração dos vírus para os seres humanos.
“Estamos sempre preocupados com o que se chama em inglês de ‘jumping virus’, ou seja, é o vírus pulando lá do reservatório da floresta para a sociedade humana. É preciso entender também que existe uma quantidade muito grande desses mesmos vírus pulando para organismos que estão dentro da própria floresta ou então para organismos que têm um potencial econômico, e os próprios peixes são um exemplo disso”, afirma Val.
Os animais podem ser fontes de doenças infecciosas causadas por vírus, bactérias e parasitas e, quando há um contato próximo com um ser humano, podem transportar esses microrganismos para o organismo humano. Val destaca que “a nossa tendência é domesticar alguns desses organismos que vivem na floresta, portanto eles são também muito vulneráveis a esses vírus, que estão soltos na floresta”.
A floresta é um dos principais locais no mundo que guardam centenas de milhares de espécies de organismos de todos os tipos que podem servir como um “habitat” para novos vírus.
“O Instituto Evandro Chagas, que fica em Belém (PA), está hoje trabalhando justamente com essa questão dos vírus. Em uma conversa, um professor que trabalha nesse instituto disse que já existem alguns milhares de vírus em organismos na floresta — desde pequenos mamíferos da floresta até plantas têm vírus. E sabemos que alguns desses são capazes de infectar humanos e produzir doenças endêmicas locais”, conta Val.
A floresta tropical amazônica passa pelo noroeste do Brasil e vai até Colômbia, Peru e outros países da América do Sul. A floresta tropical é a maior do mundo em biodiversidade e abriga milhares de rios em toda a sua extensão: no total são 5.500.00 km² de área, sendo o ponto mais alto o Pico da Neblina, com 2.993 metros.
Doutor e pesquisador que atuou por durante quase 38 anos no Inpe, Carlos Nobre confirma que a Amazônia é o local com a maior biodiversidade de microrganismos e que pode apresentar uma nova pandemia a qualquer momento.
“As cidades cresceram muito em cima da floresta, bem nessa fronteira da floresta. Então um vírus, uma bactéria ou um protozoário pode migrar, sim. A probabilidade de zoonoses aumenta muito, e é por isso que se diz que, se continuarmos com o desmatamento da Amazônia nesse ritmo globalmente, é ‘sorte’ que uma grande pandemia mundial não tenha se originado ainda na Amazônia, o lugar com mais espécies de microrganismos do mundo”, alerta Nobre.
Um dos principais fatores que podem influenciar o surgimento de uma pandemia direto da floresta é a possibilidade de um vírus “saltar” para um novo hospedeiro. Esse processo é denominado de zoonose e pode se tornar ainda mais grave no novo hospedeiro.
O pesquisador Adalberto Val acrescenta que, “uma vez que um vírus acaba chegando ao homem, se for um vírus com características de rápida disseminação e que cause problemas, ocorre o que temos vivido com a covid-19”. Val lembra que já houve diversos casos na humanidade de vírus que “pulavam” para a espécie humana.
“Nós já tivemos alguns episódios de vírus pulando para humanos e causando epidemias, mas o potencial para que isso aconteça é muito alto. Alguns autores dizem que não é se vai acontecer, mas uma questão de quando isso vai acontecer.”
O cientista destaca que o principal caminho para evitar esse tipo de acontecimento é trabalhar na preservação do meio ambiente que a floresta compõe. “Precisamos parar de ‘cutucar a floresta com vara curta’, pois isso pode nos colocar em risco em um futuro próximo. Não colocou até agora porque a quantidade de intervenções que fazíamos na floresta era relativamente pequena; o cenário muda à medida que ampliamos isso com novas áreas de mineração e expansão das cidades — não só no Brasil, mas também nos demais países amazônicos. Tudo isso acaba aumentando dramaticamente o risco de algumas dessas pessoas atuarem nessas intervenções como portadoras de uma virose de lá do meio da floresta para as sociedades que vivem nas cidades”, alega Val.
O pesquisador Carlos Nobre também alerta que ataques à floresta aumentam as chances de que haja um vírus com grau elevado de disseminação para a população, como outros já conhecidos pela humanidade.
“É ‘sorte’ que nenhuma pandemia até hoje do grau de letalidade e severidade de covid-19, Sars 1, ebola, HIV e zika tenha se originado na Amazônia, mas isso não é impossível, porque todos os elementos estão lá: perturbação da vida selvagem e humanos que vão na florestas e podem ser os vetores para trazer vírus, bactérias, parasitas, protozoários ou patógenos para cá.”
A gestora ambiental Cristiane Mazzetti explica que “trabalhamos há muitos anos para conter e zerar o desmatamento na Amazônia, pois ele contribui negativamente para a crise do clima e a perda da biodiversidade. Quando ocorre o desmatamento, o carbono presente na floresta é liberado e também acabamos com o habitat das espécies da biodiversidade”.
Os dados do Inpe de 1º de agosto coletados pelo satélite mostram 6,8 mil regiões dentro da Amazônia que foram tomadas por incêndios em julho, tendo um aumento de 28% com relação ao mesmo período em 2019. Já o início de agosto registrou um crescimento de 17% com relação ao mesmo mês no ano passado e demonstra que as temporadas de incêndio começaram antecipadamente em 2020.
Mestre e perito criminal federal na área de meio ambiente, Gustavo Geiser explica como funciona o trabalho de atuação da polícia diante dos alertas de desmatamento na amazônia.
“A polícia judiciária trabalha provocada; isso significa que existe uma denúncia, um alerta de desmatamento, enfim, algo que provoca o Estado a agir. Havendo essa denúncia, surge uma hipótese para ser verificada. Nós buscamos a autoria, para verificar quem cometeu aquele crime e a materialidade, exatamente qual é aquele crime. O meu papel é a descrição dessa materialidade”, afirma Geiser.
O perito ainda destaca as dificuldades diante do processo. “Infelizmente, não temos pernas para abrir inquéritos para cada um dos desmatamentos, então temos a esfera administrativa, Ibama, ICMBio, entre outras, que atuam primeiro e, quando chega na esfera criminal, nós instruímos o processo.”
O cientista Carlos Nobre previu em 1997 que, se o processo de desflorestamento for mantido, parte da Amazônia irá se tornar uma savana em período que pode variar de 50 a 100 anos. Esse processo pode influenciar diretamente o processo da disseminação de novas zoonoses e doenças infecciosas de alto risco para a população humana.
“Essa transformação é como se você libertasse centenas de milhares de espécies de microrganismos que estão naquele equilíbrio. De repente, não existe mais a floresta, e eles espalham — em inglês, conhecido como ‘spillover’, que é o espalhamento. A grande preocupação quanto a zoonoses é justamente o espalhamento”, confirma Nobre.
“Os microrganismos estão em um ambiente com clima típico de dentro da floresta, com pouca variação de temperatura, e de repente se encontram em um clima de savana, muito seco durante uma parte do ano, com uma temperatura bem mais alta. Eles vão morrer, buscar adaptação e ir para outros animais”, descreve Nobre.
Os riscos da migração de zoonoses para a população diante de uma savanização da floresta é grande, devido à perturbação do ambiente onde milhares espécies de vírus vivem atualmente. “Há diferentes espécies de formigas vivendo em cada área da Amazônia; o Reino Unido inteiro não tem 300 espécies de formigas, nem a Escandinávia. Então, essa comparação é só para mostrar que se trata de um local com várias espécies, microrganismos, plantas, animais — e tudo está em equilíbrio, interagindo e evoluindo”, acrescenta Nobre.
“A perturbação das florestas tropicais coloca um risco de virar um fenômeno e, a cada semana, ter uma nova zoonose. Nós precisamos combater as mudanças climáticas, a crise climática, a perda de biodiversidade e manter o clima das florestas para evitar esse enorme risco de pandemias”.
Conforme os dados de alertas de desmatamento do Inpe, diversos estados tiveram picos. Cristiane Mazzetti ressalta que “enquanto muitos estavam em home office, esse não foi o caso daqueles que destroem a Amazônia, e o desmatamento tem aumentado significativamente”.
O cientista Carlos Nobre também destaca a importância de investir na preservação na floresta para evitar prejuízos maiores como o da covid-19. “Um estudo recente mostrou que o custo de preservar as florestas tropicais é uma ‘fraçãozinha’ do prejuízo que a covid-19 está gerando para a economia mundial.”
Os 5 municípios com maiores alertas de desmatamento são: Altamira (633,28 km²), São Félix do Xingu (468,87 km²), Porto Velho (414,07 km²), Lábrea (379,47 km²) e Novo Progresso (286,91 km²). Segundo Cristiane Mazzetti, isso vem acontecendo principalmente “porque temos, infelizmente, um governo que atua contra o meio ambiente. Desde que assumiu, o governo atual tem enfraquecido os órgãos que exercem a proteção ambiental e enfraquecido as operações para o controle do desmatamento. Com isso, desmatadores, garimpeiros, grileiros (aqueles que roubam terras públicas) e grandes proprietários de terra aproveitam a situação e avançam sobre a floresta. A verdade é uma só: o desmatamento está fora de controle na Amazônia”.
O perito Gustavo Geiser apresenta os principais problemas e impasses da atuação da polícia nos alertas de desmatamento, que ocorrem na floresta durante a pandemia do novo coronavírus.
“O coronavírus acaba dificultando a ação do Estado. Várias pessoas na delegacia tiveram coronavírus — eu mesmo fiquei afastado 3 semanas de cama. Então, a equipe disponível diminuiu; o planejamento era de reunir 40 pessoas, mas levamos em consideração o risco agora. E ainda tem a questão das terras indígenas: devemos ter contato com eles nesse momento? São decisões delicadas, porque corremos o risco de levar o coronavírus para a aldeia. Porém, se eu não tirar os garimpeiros de lá, eles é que vão levar o coronavírus até os povos indígenas”, relata Geiser.
O pesquisador Adalberto Val separa em três grupos esse processo de exploração ligado à possibilidade de surgirem novas pandemias como a da covid-19. “O primeiro é o grande grupo chamado ‘uso da terra’, que envolve o desmatamento raso para a criação de bois, plantação de cana, soja etc. O mundo já acordou para essa realidade e tem plena consciência de que precisamos parar com isso; também há as questões de mineração, abertura de estradas e coisas desse tipo.”
O segundo grupo traz o contexto das mudanças climáticas e a emissão descontrolada de dióxido de carbono. “Nós podemos não ser os maiores emissores de dióxido de carbono, mas dividimos com o mundo os problemas que esse aumento das emissões de dióxido carbono causa em todo o planeta”, acrescenta Val.
“O terceiro ponto é a informação, que é central para todos esses processos. Primeiramente, a vasta informação sobre a Amazônia não é de domínio dos países amazônicos. Para a região da Amazônia, que representa cerca de 60% do território brasileiro, o Brasil hoje recebe 2 e não mais que 2,5 % dos investimentos para a área de ciência e tecnologia. Ou seja, se quisermos colocar a Amazônia na nossa agenda de ciência e tecnologia, precisamos sair desses investimentos históricos e galgar para um investimento massivo na região e, de tal forma, fixar pessoas qualificadas lá para produzir as informações que queremos.”
O cientista amplia o contexto da Amazônia e da possibilidade do surgimento de doenças que podem afetar a humanidade para reiterar a importância da ciência como meio de conhecer e prevenir a sociedade de acontecimentos como a pandemia da covid-19. “Se não conhecermos a nossa casa — e a Amazônia é parte da nossa casa —, não teremos soberania sobre essa parte. Essa questão não pode ser dissociada das questões sociais e culturais. Lembrando sempre que a ciência é uma atividade social com fins sociais. Fazemos ciência para a sociedade em que estamos inseridos”, conclui Val.
Desmatamento na Amazônia: mundo corre risco de novas pandemias via TecMundo