Ciência
20/10/2017 às 03:00•7 min de leitura
Como boa parte das crianças do mundo, a norte-americana Margaret Howe Lovatt cresceu ouvindo histórias de animais falantes. “Havia um livro que minha mãe me deu chamado ‘Miss Kelly’. Era uma história sobre um gato que conseguia falar e entender humanos, e ela simplesmente me deixou com a sensação de que talvez isso fosse possível”, diz a mulher.
Diferentemente da maior parte das crianças, no entanto, Lovatt não esqueceu os contos de animais falantes quando cresceu. Quando tinha pouco mais de 20 anos e vivia nas ilhas caribenhas de St. Thomas, no Natal de 1963, seu irmão mencionou um laboratório secreto na costa leste do local em que estavam ocorrendo estudos com golfinhos, o que a deixou bastante curiosa.
Ela então foi até o prédio escondido e foi recebida por Gregory Bateson, um grande intelectual do século XX que dirigia o laboratório. Questionada sobre o motivo de sua presença ali, Lovatt respondeu que gostaria de fazer algo para ajudar no trabalho com os golfinhos. Desacostumado com visitas inesperadas e impressionado pela cara de pau da mulher, ele a convidou para observar os animais por algum tempo e fazer anotações.
Mesmo sem possuir treinamento científico, Lovatt se demonstrou uma observadora intuitiva do comportamento dos animais e foi convidada a voltar sempre que desejasse. “Havia três golfinhos: Sissy, Peter e Pamela. A Sissy era a maior. Era barulhenta, forçosa e meio que comandava a turma. Já a Pamela ela tímida e medrosa. E o Peter era um rapazinho. Ele estava chegando à maturidade sexual e era um pouco safadinho”, lembra a mulher.
As instalações do laboratório haviam sido criadas para aproximar humanos e golfinhos e foram idealizadas pelo neurocientista norte-americano John Lilly. No local, ele buscava se comunicar com as criaturas, tentando estimular sua habilidade de fazer sons similares às vozes humanas por meio dos seus orifícios respiratórios.
Os estudos de Lilly vinham de anos antes da criação do laboratório secreto, a Casa do Golfinho. Em 1961, ele publicou um livro chamado “Man and Dolphin” (“Homem e Golfinho”, em tradução livre), no qual abordava a capacidade dos animais de imitar alguns dos nossos sons e tratava da possibilidade de ensiná-los a falar inglês.
O texto chegava ao extremo de propor a possibilidade de criar uma “cadeira dos cetáceos” na Organização das Nações Unidas, permitindo que os animais nos passassem seu conhecimento sobre o mundo e ampliassem nova visão sobre História, Ciência, Economia e assuntos atuais. As teorias de Lilly fizeram sucesso e se tornaram significativas até mesmo para os astrônomos.
Um dos estudiosos que leram o livro e ficaram interessados foi Frank Drake, que havia acabado de completar seu primeiro experimento para detectar sinais vindos de civilizações extraterrestres. “Era um livro muito empolgante porque possuía essas novas ideias sobre criaturas tão inteligentes e sofisticadas quanto nós, mas que viviam em outros ambientes”, diz ele.
Como ambos buscavam entender tanto quanto possível os desafios de se comunicar com outras espécies inteligentes, o interesse de Drake na pesquisa de Lilly o ajudou a obter suporte financeiro da NASA e de outras agências governamentais dos Estados Unidos. Isso levou à criação do laboratório no Caribe em 1963 e, no começo do ano seguinte, Lovatt chegou.
Com sua natureza empática, Lovatt rapidamente se conectou com os três animais e começou a passar o máximo de tempo possível com eles enquanto dava prosseguimento a um programa de lições diárias para encorajá-los a fazer sons humanos. Enquanto isso, Bateson prosseguia com uma pesquisa paralela, concentrada na comunicação entre os próprios animais.
No entanto, nem mesmo as instalações avançadas da Casa do Golfinho eliminavam todas as barreiras entre os bichos e Lovatt. “Todas as noites nós entrávamos nos nossos carros, fechávamos a porta da garagem e íamos embora. E eu pensava: ‘Bom, lá estão aqueles grandes cérebros, simplesmente flutuando a noite inteira’. Eu ficava impressionada que todo mundo simplesmente fosse embora e achava isso errado”, afirma.
A mulher então pensou que, caso pudesse viver com um golfinho o tempo todo para incentivar seu interesse por fazer sons humanos, como uma mãe faz quando ensina seu filho a falar, eles poderiam ter mais sucesso. “Então eu disse a John Lilly: ‘Quero emplastrar tudo e encher esse lugar de água. Gostaria de morar aqui”, diz Lovatt.
A natureza radical da ideia atraiu Lilly e ele a autorizou. Ela então tornou os pisos superiores do laboratório completamente à prova d’água para que pudesse inundar as salas de dentro e uma varanda exterior. Isso permitiria que um golfinho vivesse com ela no prédio por alguns meses, e ela selecionou o macho para o experimento.
“Eu escolhi trabalhar com Peter porque ele ainda não tinha recebido nenhum treinamento de sons humanos, mas as outras duas já”, explica Lovatt. A mulher vivia isolada com o golfinho por seis dias seguidos e, no sétimo, o mandava de volta para o espaço aberto onde Pamela e Sissy ficavam.
Na primeira noite, Lovatt lembra de ter se questionado sobre o que estava fazendo e sentido insegurança. “Mas então voltei a me envolver e nunca mais me ocorreu não fazer aquilo. Eu estava tentando descobrir o que o Peter estava fazendo ali e o que seria possível realizarmos juntos. Esse era o propósito, e ninguém havia tentado isso antes”, explica.
Lovatt então passou a documentar seu progresso em fitas de áudio, que mostravam suas empolgadas lições feitas duas vezes ao dia, o incentivando a cumprimentá-la com a frase “Olá, Margaret”. Segundo ela, a letra M foi a parte mais difícil. “Eu trabalhei no som ‘M’, e ele eventualmente rolou dentro da água para fazê-lo com bolhas. Ele se esforçou tanto para fazer aquilo”, conta ela.
Para a mulher, no entanto, não eram as lições formais que mostravam mais sobre a forma como o golfinho raciocinava. “Era quando não tínhamos nada para fazer que realmente avançávamos mais. Ele era muito interessado na minha anatomia. Se eu estivesse sentada com as pernas dentro da água, ele sempre se aproximava e ficava bastante tempo olhando para a parte traseira do meu joelho. Ele queria saber como aquilo funcionava, e isso me encantava”, diz.
Mesmo com tudo isso, ainda havia uma coisa atrapalhando o progresso das lições. Segundo o veterinário Andy Williamson, que cuidava dos animais no laboratório, os golfinhos são tomados por ímpetos sexuais. “Tenho certeza que Peter tinha vários pensamentos desse tipo”, ressalta.
“Peter gostava de estar comigo. Ele se esfregava nos meus joelhos, pés e mãos. No começo, eu o levava de volta para baixo com as fêmeas”, diz Lovatt. No entanto, como a excitação do golfinho acontecia frequentemente e acabava atrapalhando as lições, os estudiosos acharam que seria mais produtivo que a mulher o aliviasse com as próprias mãos, masturbando-o.
“Eu permiti isso e não me incomodava, contanto que não fosse nada bruto. Isso simplesmente se tornou parte do que estava acontecendo, como uma coceira – você coça, livra-se dela e prossegue. E foi assim que as coisas funcionaram. Não era íntimo, e qualquer um poderia ver”, explica Lovatt, que ressalta que tudo foi feito com muito respeito.
Segundo a mulher, embora a experiência fosse algo bastante sensível, jamais foi algo sexual para ela. “Parecia para mim que aquilo aproximava nossos laços. Não por causa da atividade sexual, mas porque não havia mais separações. E isso é tudo. Eu estava lá para conhecer o Peter, e aquilo era parte dele”, reforça.
Mesmo com esse obstáculo tirado do caminho, não levou muito tempo para que outra coisa começasse a atrapalhá-los. Na década de 1960, um pequeno e seleto grupo de neurocientistas foi autorizado pelo governo norte-americano a fazer pesquisas sobre a droga LSD. John Lilly, que fazia parte dos selecionados, acreditava que o entorpecente possuía qualidades medicinais que poderiam ser usadas para tratar pacientes com problemas mentais.
Parte dessa pesquisa envolvia ocasionalmente injetar a droga em animais, e Lilly vinha usando seus golfinhos para isso desde 1964. Para sua infelicidade, no entanto, o entorpecente não surtiu qualquer feito nas criaturas, mesmo após várias tentativas. “Espécies diferentes reagem de formas variadas a fármacos. Um tranquilizante para cavalos pode induzir um estado de euforia em um cachorro”, explica o veterinário Andy Williamson.
Injetar o LSD nos golfinhos era algo com que Lovatt não concordava, e ela insistiu que a droga não fosse dada para Peter até que Lilly concordasse. No entanto, ela se sentiu impotente para impedir o experimento com as duas fêmeas, já que tanto o laboratório quanto os animais pertenciam a ele. Enquanto isso, ela persistiu nas lições de vocalização com o macho e se aproximou cada vez mais dele.
“Aquele relacionamento de ter que estar juntos meio que se transformou em realmente gostar disso, desejar estar com ele e sentir sua falta quando não estava. Eu realmente me envolvi bastante com Peter – não consigo mais nem o chamar de golfinho”, reflete Lovatt. Enquanto isso, o interesse de Lilly pelo experimento do animal falante ia diminuindo cada vez mais em favor do que envolvia LSD.
A atitude desdenhosa do pesquisador com relação ao bem-estar dos golfinhos eventualmente levou o diretor do laboratório, Gregory Bateson, a se afastar, o que por sua vez acabou levando ao corte do financiamento governamental. Na mesma época em que o experimento de 6 meses de convivência entre Lovatt e Peter estava acabando, ela recebeu o aviso de que o espaço seria fechado.
Sem o dinheiro, o destino dos golfinhos passou a preocupá-la. “Eu não poderia manter Peter. Se ele fosse um cachorro ou um gato, talvez, mas não um golfinho”, lamenta a mulher. Lovatt então se tornou a responsável por desativar o laboratório e se preparou para enviar os animais para outro laboratório de Lilly, em um antigo prédio bancário fora de uso, em Miami.
Obviamente, os pequenos tanques quase sem luz solar do laboratório na cidade californiana nem se comparavam à relativa liberdade e conforto da Casa do Golfinho. Peter então passou a se deteriorar rapidamente e, algumas semanas após a transferência, o seu dono ligou pessoalmente para dar notícias a Lovatt. “Ele disse que Peter havia cometido suicídio”, diz a mulher.
Ex-treinador de golfinhos responsável pelos animais que participaram do filme “Flipper”, Ric O’Barry afirma que o uso do termo foi correto. “Golfinhos não respiram automaticamente como nós. Cada respiração é um esforço consciente para eles. Se a vida se torna insuportável demais, eles simplesmente seguram o ar, afundam o máximo que podem e não sobem para respirar mais”, explica.
Para o veterinário da Casa do Golfinho, Andy Williamson, o suicídio de Peter foi causado por um coração partido pela separação incompreensível entre ele e Lovatt. “A Margaret conseguiu racionalizar tudo, mas, quando ela partiu, será que ele conseguiria fazer o mesmo? O amor da vida dele simplesmente se foi”, reflete.
Cerca de 50 anos depois do ocorrido, Lovatt afirmou não ter ficado excessivamente triste por conta da notícia. “Eu ficava mais infeliz por saber que ele estava naquelas condições [no laboratório de Miami] do que se ele simplesmente não estivesse mais lá. Daquele jeito, ninguém mais poderia incomodar Peter, fazê-lo sofrer, deixá-lo se sentir só. Ele apenas se foi, e isso era melhor. É estranho, mas foi assim que me senti”, explica.
Nas décadas seguintes, John Lilly continuou a estudar as comunicações entre humanos e golfinhos de outras formas. Ele explorou muitas possibilidades, sendo alguma delas estranhamente místicas, com o uso de telepatia, e outras mais científicas, usando tons musicais. Ninguém voltou a tentar ensinar inglês para os animais.
Margaret Howe Lovatt ficou na ilha e se casou com o fotógrafo que capturou imagens do experimento. Juntos, eles se mudaram para a Casa do Golfinho e a transformaram em um lar familiar, onde criaram três filhas. “Era um bom lugar. Havia uma sensação agradável o tempo todo”, lembra a mulher.
Hoje, a casa acabou abandonada e malcuidada, mas a ambição do que aconteceu lá ainda é lembrada por muitos. “Ao longo dos anos, recebi cartas de pessoas que também estão trabalhando com golfinhos. Elas frequentemente diziam coisas como: ‘Quando eu tinha 7 anos, eu li sobre como você estava vivendo com um golfinho e foi isso o que me fez começar tudo”, afirma Lovatt.
Lembrando de sua própria infância e do seu livro sobre animais falantes, ela explica que a história dela com Peter é a “Miss Kelly” dessas outras gerações. “Aquele livro me inspirou a fazer o que fiz e, por sua vez, eu ter vivido com um golfinho motivou outras pessoas. Isso é divertido e me agrada”, completa.
*Publicado em 13/06/2014