Artes/cultura
19/02/2021 às 06:00•3 min de leitura
Quando falamos em bruxarias, feitiços ou caça às bruxas nos dias atuais, normalmente alguém nos acusa de ter ideias “medievais”, numa asserção de que teria sido durante a Idade Média, ou seja, do ano 500 ao 1500 d.C, o período em que as pessoas acreditavam em magias, monstros e fadas.
Mas a verdade é que a figura da bruxa surgiu, ou foi inventada, pela primeira vez na Europa já no final da Idade Média. Isso quer dizer que, embora os componentes isolados da feitiçaria, como os malefícios, o diabolismo e as religiões heréticas, fossem considerados como reais naquela época, foi somente no final do século XV, já na época das grandes navegações, que esses conceitos se fundiram na ideia de bruxaria.
Também é dessa época um conceito que constitui um dos elementos mais implacáveis com reflexos nos dias atuais: o estereótipo de que a bruxaria está relacionada às mulheres em vez de homens. Isso ficou explícito num dos textos mais famosos sobre as bruxas, o Malleus maleficarum, escrito pelo inquisidor Heinrich Kramer no ano de 1486, o verdadeiro manual de caça às bruxas.
Terrivelmente misógino, o trabalho de Kramer correlacionava feitiçaria com o que ele acreditava ser uma fraqueza espiritual das mulheres e uma tendência natural delas para o mal. A conclusão do dominicano era de que “toda feitiçaria vem da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”.
Uma vez que, até os meados do século XV, as pessoas tinham uma noção indistinta de bruxaria, limitada a ocorrências esporádicas, coube a um pequeno grupo de escritores da Europa Central, a maioria inquisidores da Igreja Católica, teólogos e magistrados leigos, a tarefa de descrever, na década de 1430, o que seriam os rituais satânicos.
Esses eventos seriam assembleias horríveis, nas quais as bruxas se reuniam para adorar os demônios, com quem realizavam orgias, nas quais devoravam bebês assassinados, além de outros atos e rituais bizarros. As cerimônias descritas tinham um local em comum: uma região localizada ao redor dos Alpes ocidentais.
O motivo para esses homens desenvolverem essa sistematização do mal tinha objetivos puramente práticos: os inquisidores da igreja, dedicados a torturar hereges desde o século anterior, estavam “perdendo clientes” e, para expandir suas jurisdições, necessitavam de novos crimes e barbaridades.
O mais curioso de tudo isso é que, naquela época, os autores acabaram quebrando a cara, porque os leitores não acreditaram naquelas histórias fantásticas. O próprio Heinrich Kramer, autor do Malleus maleficarum, ao tentar iniciar uma caça às bruxas na cidade de Innsbruck, na Áustria, foi expulso pelo bispo local, que o acusou de estar ficando totalmente caduco.
Kramer não se deu por vencido e, em 1484, possivelmente com o seu manual de caça às bruxas, também conhecido como Martelo das Bruxas, já parcialmente concluído, conseguiu obter do papa Inocêncio VIII, uma bula papal que lhe concedia o poder de punir quaisquer pessoas, “corrigindo-as, multando-as, prendendo-as, punindo-as, na proporção de seus crimes”.
De posse de uma “licença para matar” emitida pelo Vaticano, Kramer e um outro dominicano chamado James Sprenger iniciaram a construção da figura da “feiticeira”, um fator essencial para que o medo da bruxaria crescesse. Dessa forma, os clérigos puderam levar adiante seu plano de dar início às perseguições tão logo recebidas as denúncias sobre as pessoas que praticavam atos de feitiçaria.
Com o passar do tempo, mais gente passou a aceitar as ideias de Sprenger e Kramer, não só porque as autoridades eclesiásticas e do estado lhes diziam que os ritos eram reais, mas às vezes para detalhar falsas acusações por motivos políticos ou perseguição a determinadas mulheres que detinham certo conhecimento de plantas e métodos de curas.
Mesmo com a maioria das pessoas rejeitando a ideia de que aquela malevolência era real, a satanização do sexo feminino, associando-o ao pecado, luxúria, fraqueza e maldade, parece ter funcionado bem para os inquisidores: de 1400 a 1700 (na Idade Moderna, portanto), 50 mil pessoas foram executadas por bruxaria, em sua grande maioria mulheres.
Pode-se dizer que o projeto de aniquilação da bruxas coincide com a aniquilação da dignidade do sexo feminino. O discurso de suspeita e depreciação da mulher, a sua associação a rituais satânicos, e a elaboração de um manual para identificar e punir bruxas ainda ratifica, após tantos séculos, uma suposta presunção de “inferioridade” do sexo feminino.