Artes/cultura
09/11/2021 às 02:00•3 min de leitura
Não, não é uma hipérbole ou algum tipo de brincadeira. De fato, houve uma época em que foram criadas leis contra pessoas "feias", talvez um dos passos mais marcantes do século XIX rumo à eugenia de raças.
Em meados de 1881, James Peevey, um vereador de Chicago (Estados Unidos), enxergava os mendigos que viviam pelas ruas da sua cidade como uma “obstrução de vias”, exatamente como se eles fossem um saco de lixo. Então, ele foi o responsável por forçar, por meio do conselho da prefeitura, uma lei que proibiu qualquer pessoa que estivesse “doente, mutilada, deformada, feia ou nojenta” de ser vista em público.
Como indica uma matéria do Chicago Tribune daquele ano comentando o caso, a lei visou criminalizar o traço da feiura, portanto os mendigos poderiam ser cobrados de US$ 1 a US$ 50, dependendo do "quão feio eram", se fossem vistos vagando pela sociedade por algum agente fiscal ou policial. Aqueles que não pudessem pagar a quantia eram encaminhados para asilos.
(Fonte: NewsLinQ/Reprodução)
Em uma época em que a população urbana crescia de maneira acelerada nos Estados Unidos, colocando os norte-americanos em contato com pessoas de todo o mundo, a primeira Lei da Feiura foi implementada em São Francisco, em 1867, como uma extensão de uma lei de proibição mais geral sobre mendigar.
No livro The Ugly Laws: Disability in Public (2009), escrito pela professora de Inglês Susan Schweik, da Universidade da Califórnia, ela disserta que a cidade estava lidando com mineiros destituídos e veteranos de guerra mutilados da Guerra Civil. Segundo os historiadores, as ruas da cidade começaram a ser povoadas por “mendigos, pessoas feias, vagabundos e loucos”.
(Fonte: Web News/Reprodução)
Com a entrada a Lei da Feiura em São Francisco, outras cidades — como Chicago, Cleveland e Omaha — seguiram o exemplo. Foi a partir disso que surgiu o movimento Cidade Bonita, uma espécie de filosofia de reforma urbana baseada na ideia de que as cidades deveriam ser o mais esteticamente "puras" possível, causando um aumento de ansiedade nas pessoas, promovendo cada vez mais a aprovação de todos os tipos de lei horríveis.
As leis também foram uma forma de segregar e tentar "varrer para baixo do tapete social" o influxo de imigrantes, veteranos e escravos recém-libertados em muitas cidades americanas. Os pobres e rechaçados não poderiam "roubar a cena" daqueles que “realmente” representavam o povo americano, ou seja, quem era branco, saudável, falante de inglês e independente.
(Fonte: Chicago Tribune/Reprodução)
Assim como a lei dos pobres da Era Vitoriana na Inglaterra, que fazia distinção entre os pobres “dignos” e “indignos”, a Lei da Feiura também estipulou diferentes tipos de punição a serem aplicadas a esses "criminosos sociais", além de multas.
Como Schweik descreve, os mendigos feios ou "indecentes" seriam tratados com menos leveza do que criminosos e não seriam levados para a prisão, mas para um asilo de pobres, onde seriam encarcerados por tempo indeterminado. Essa medida serviu apenas para marginalizar e criminalizar ainda mais a pobreza e a deficiência, como se essas pessoas tivessem culpa de suas condições.
As mulheres "feias" também significaram uma grande ameaça para o status quo, ainda mais em uma época em que a feminilidade adequada era entendida como avessa à exibição pública. Em Ohio, surgiu um Decreto da Feiura que incluía proibições de “comportamento lascivo”, atos indecentes, imodestos ou imundos; vestimenta imprópria; prostituição, incluindo qualquer "mulher obscena" que pudesse fazer qualquer exibição ousada ou meretrícia de si mesma.
(Fonte: JStor Daily/Reprodução)
A linguagem das leis sugeria um desgosto particular pelo ato de chamar a atenção para si mesmo, atraindo o olhar de um "transeunte inocente". Isso fez muito parte do discurso do século XX da campanha nova-yorquina para promulgar a Lei da Feiura contra imigrantes e negros.
Ao longo dos anos, muitas das Leis da Feiura foram derrubadas e, até meados do século XX, poucas delas prevaleceram — apesar de nunca terem sido abandonadas do senso coletivo dos americanos. Na verdade, elas apenas perderam o nome e foram substituídas por outras novas mais "politicamente corretas", também destinadas a criminalizar a pobreza e a falta de moradia, como aquelas que proibiam compartilhar ou dar alimentos para pessoas desabrigadas.