Saúde/bem-estar
24/02/2022 às 04:00•3 min de leitura
Muita gente já ouviu falar sobre o Santo Daime, mas pouca gente sabe de fato como funciona essa doutrina religiosa que se fundamenta, em parte, no consumo de um chá com propriedades alucinógenas. Trata-se de um movimento religioso surgido na Amazônia, baseado na ingestão da Ayahuasca (o princípio ativo do chá) e que tem forte relação com o cristianismo.
Sua história no Brasil se inicia na década de 1930, no Acre, quando um seringueiro chamado Raimundo Irineu Serra teve seu primeiro contato com a Ayahuasca na Amazônia boliviana. Ao ingerir o chá, ele teve uma visão: uma mulher, que se apresentou como a “Rainha Universal”, e o orientou a vagar pela mata ao longo de 8 dias.
No oitavo dia, a mulher revelou ser a Virgem Maria (por isso, Nossa Senhora da Conceição é considerada a padroeira do Santo Daime) e o orientou a espalhar a palavra de Deus por meio da Ayahuasca. O chá ganhou então o nome de “Daime” por conta do verbo “dar”. Por isso, os cantos usados nos cultos do Santo Daime costumam repetir expressões como “Dai-me cura” e “Dai-me fé”.
Os seguidores do Santo Daime acreditam que o chá de Ayahuasca possibilita a expansão da consciência, tendo acesso, assim, a respostas para as angústias de sua vida. Um ritual desta doutrina, em que os presentes fazem o consumo do chá, pode ser bastante demorado, durando horas ou, em algumas vezes, até dias.
(Fonte: Pexels)
O chá feito para o ritual de Santo Daime tem como substância ativa a Ayahuasca, que provém da decocção do cipó Banisteriopsis caapi, conhecido como Jagube, e da folha Psychotria viridis, também chamada de Rainha ou Chacrona. Ambas as plantas são oriundas da região amazônica e são consumidas pelos nativos deste local há séculos. A partir do século XX, a Ayahuasca passou a ser conhecida também pela população que não é indígena.
Já há estudos feitos por pesquisadores que mapeiam os efeitos da Ayahuasca no cérebro. Um deles, conduzido pela Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, fez ressonâncias magnéticas em 10 pessoas (5 mulheres e 5 homens) após ingerirem a bebida. O que se observou foram alterações em regiões do cérebro ligadas à memória e à visão, o que pode explicar as imagens que as pessoas costumam ver quando consomem o chá.
Já pesquisas anteriores comprovaram a ligação do chá com o efeito de aumento de serotonina no cérebro, o neurotransmissor ligado à sensação de prazer. O neurocientista Eduardo Schenberg, pesquisador da Unifesp, explica: "a bebida tem uma farmacologia bem complexa, que inclui pelo menos 4 substâncias importantes. Três delas atuam no sistema de transmissão da serotonina e a quarta, chamada de dimetiltriptamina ou DMT, ativa a área do cérebro que induz a visões de caráter realista", comenta.
(Fonte: Santo Daime)
Ainda que o Santo Daime seja fortemente ligado aos princípios do cristianismo e do catolicismo (com o culto sobretudo voltado a Deus, a Jesus e à Virgem Maria), a doutrina ainda é cercada de muitos preconceitos, principalmente por conta do consumo do chá que, segundo os seguidores, tem propriedades enteógenas (que significa "manifestação interior do divino"). Vale lembrar, no entanto, que o chá foi retirado da lista de drogas alucinógenas do Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) em 2004, e foi declarado um patrimônio nacional em 2008.
O Santo Daime é considerado uma doutrina religiosa e não uma religião. Na prática, isso significa que a prática não protege os seus participantes quanto a todos os seus direitos – como, por exemplo, a garantia assegurada em lei para o exercício das manifestações religiosas.
Em 2020, a deputada Jessica Sales (MDB-AC) apresentou um projeto de lei que visava reconhecer o Santo Daime enquanto religião, o que traria maior regulação e responsabilidade (inclusive jurídica) para as entidades que realizam cultos.
O PL, segundo a sua autora, buscava “diferenciar o que é legítimo e protegido pelo Estado daquelas pseudo-entidades que fazem o mau uso do chá, muitas vezes relacionando seu uso a práticas recreativas ou outras que nada têm a ver com o legítimo exercício da religião”, explicou Sales. O projeto, entretanto, foi retirado.