Mistérios
01/09/2022 às 09:00•3 min de leitura
Todo mundo sabe que hoje em dia as pessoas amam seus cachorros, muitas vezes tratando-os até como parte da família, tentando inclusive perpetuar esse amor ao clonar os bichinhos, na esperança de que nunca seja necessário ao tutor se separar de seu fiel companheiro.
Além de serem uma companhia agradável e muitas vezes bem divertida, é comum ouvir relatos de cães protagonizando verdadeiros feitos heroicos — como é o caso de Guinerfort, o cachorrinho recusado pela igreja como santo.
Lá pela segunda metade do século XIII, um frei dominicano chamado Estevão de Bourbon costumava viajar pela região sul da França documentando todo tipo de coisa "esquisita", como superstições, crenças e heresias. Dentre as histórias encontradas pelo religioso estava a de Guinefort, um cãozinho da raça Galgo Inglês (também conhecida como Greyhound) que acabou ganhando status de "santo".
Guinefort era um cãozinho da raça Galgo Inglês, também conhecida como Greyhound, como este da imagem. (Foto: Wikimedia Commons/Reprodução)
Segundo conta a história, certo dia, o senhor e a senhora de um castelo na cidade de Lião, na França, retornavam para casa. A expectativa era de encontrar seu bebê dormindo são e salvo mas, ao abrir a porta de casa, o casal se deparou com tudo revirado. Parecia que uma verdadeira batalha havia ocorrido no castelo, e para piorar a situação eles encontraram o berço do bebê derrubado no chão perto de sangue. Muito sangue. E Guinefort, o fiel cãozinho da família, veio até eles com o focinho todo ensanguentado.
Em um ato de desespero, imaginando que o cachorro havia devorado a criança, o lorde do castelo desembainhou sua espada e matou o animal. Atordoado, triste e completamente desolado pela perda do filho, o casal se aproximou do berço caído... e encontrou a criança sã e salva. Perceberam então que todo aquele sangue era, na verdade, de uma cobra que havia entrado na propriedade e que Guinefort, em um ato de heroísmo, matou para defender o bebê.
Gravura ilustra os senhores do castelo abatendo o cão Guinefort, que defendeu seu bebê do ataque de uma cobra. (Foto: Amusing Planet/Reprodução)
Completamente arrependido por ter tirado a vida de seu fiel companheiro, o senhor do castelo então deu ao cãozinho um enterro digno, empilhando algumas pedras que acabaram se tornando uma espécie de altar. A história logo se espalhou pelas redondezas e a figura de "São Guinefort", o falecido cão herói, começou a atrair mais e mais pessoas desesperadas em busca de ajuda para seus próprios filhos. Nascia ali uma figura santa — mas não por muito tempo.
Um dos maiores problemas em relação a "santificar" o pobre Guinefort era a forma como as pessoas o faziam: geralmente, a busca do milagre em nome do cãozinho vinha em forma de procedimentos que mais pareciam tortura do que cura. Mães e pais punham em risco a segurança de seus filhos em rituais que envolviam fogo, afogamentos e todo o tipo de coisa impensável. Ao saber sobre tudo isso, o frei Estevão de Bourbon resolveu intervir, buscando acabar com aquelas práticas terríveis.
Ilustração de um cão da raça Galgo Inglês, datada de 1658. (Foto: Edward Topsell/Reprodução)
O frei alegou que tais rituais não eram coisa de Deus, mas sim que acabavam invocando demônios, e reforçou que as práticas era basicamente infanticídio. Estevão se sentiu ofendido por ver um cão sendo tido como figura santa, alegando que isto era uma afronta aos verdadeiros santos canônicos.
Visando dar um fim a toda a loucura, o frei mandou destruir o altar construído no túmulo do cãozinho. Além disso, ele deixou avisado que venerar o cachorro acarretaria multa. Isto, é claro, não impediu que as pessoas continuassem a orar e pedir auxílio ao cachorro herói por muitos séculos.
Guinefort, é claro, jamais foi canonizado pela Igreja Católica, especialmente porque a instituição não canoniza animais. Outro ponto importante a se levantar é que a história do cachorro santo nunca foi confirmada: na verdade, existem outros relatos similares ao redor do mundo, então pode ser que tudo isto não passe de apenas um conto passado de geração para geração. Um conto heroico e trágico, mas ainda assim apenas um conto.