Ciência
31/12/2023 às 02:00•2 min de leitura
Por que existem tantos protestos na França? Essa é a dúvida que permeia várias entradas no Google todos os anos, porque, realmente, a França sempre ocupa os jornais mundiais com alguma revolta pública – ou várias – ao longo do ano.
As demandas e os motivos estão em constante mudança, desde o controle de aluguéis, salário mínimo mais alto, redistribuição de riqueza mais ampla, políticas educacionais elitistas, ou aumento de idade da aposentadoria.
Para entender o porquê isso acontece, é preciso voltar ao século XVIII.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
De alguma maneira, o protesto sempre esteve enraizado na cultura francesa. No período medieval, o protesto de rua era chamado de charivari, e consistia na prática de sair às ruas para humilhar publicamente pessoas acusadas de ofensas morais, como adultério. O grupo de manifestantes batia panelas, gritava canções zombeteiras e forçava os acusados para fora de suas casas e até mesmo da cidade. Havia alguns casos que dinheiro era pago à multidão reunida como forma de retratação.
Ao longo do tempo, os charivaris foram adquirindo um viés cada vez mais político, visando as casas dos políticos e funcionários impopulares a serviço do rei. Certamente, a prática encontrou seu ápice em 14 de julho de 1789, quando a França estava afogada em dívidas devido aos gastos extravagantes da comitiva real de Luís XVI, com impostos cada vez mais altos, enquanto a nobreza e o clero desfrutavam de isenções fiscais.
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Sendo assim, a população, esmagada pelo dízimo obrigatório, pelas más colheitas e pelo aumento do preço de commodities, como a farinha, estourou de raiva pelas ruas de Paris. A Bastilha, símbolo da monarquia, caiu, assim como o império do rei. Três anos e meio depois, o feudalismo foi abolido, o rei foi morto na guilhotina, e a declaração dos direitos do homem e do cidadão foi proclamada, seguida pela primeira constituição do país. Começava ali um novo capítulo na história francesa, que só aconteceu graças à revolta do povo.
Acredita-se que o fantasma tanto da morte dos monarquistas quanto do que a ira de uma população era capaz passaram a assombrar os líderes políticos. Afinal, essa herança sangrenta continuou de várias formas, porque a Revolução de Julho de 1830 viu a derrubada do rei Carlos X, que foi substituído por Luís Felipe, o Duque de Orleans, que também caiu menos de 20 anos depois, forçado pelo povo a renunciar.
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Depois da Revolução Francesa, a Comuna de Paris foi a insurreição de maior proporção. Liderada pelas classes trabalhadoras, durou mais de dois meses em 1871, plantou as sementes da emancipação feminina, da liberdade de imprensa e do princípio da laicidade nas escolas e no governo.
No século XX, os comunistas passaram a liderar os protestos de rua, chegando a reunir 600 mil pessoas em 1936 durante uma greve geral iniciada após a eleição da Frente Popular, em maio de 1936, que levou à criação de um governo de esquerda liderado por Léon Blum. Sua proporção forçou uma rápida aceitação do governo, que assinou os chamados Acordos de Matignon, trazendo vitória para as classes trabalhadoras com salários maiores em toda a linha e os direitos inequívocos de se sindicalizar.
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Para o sociólogo Charles Tilly, os protestos franceses guardam a estridência dos charivaris em sua essência, e ele os enxerga como uma resposta ao crescimento do Estado e do capitalismo franceses. À medida que a política se tornou cada vez mais dominada por um Estado central e elites capitalistas, as pessoas comuns desenvolveram uma consciência política nacional, portanto, suas táticas de protesto mudaram de acordo.
Sendo assim, o protesto continua sendo uma parte importante da vida nacional francesa, de um povo que ama a história e todas as comemorações dela. “A França muitas vezes olha para o seu passado tanto quanto olha para o seu futuro ao responder ao seu presente”, disse Guy Groux, especialista em protestos franceses no Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris, em entrevista à Time em 2009.