Ciência
31/12/2023 às 14:00•3 min de leitura
Registrados na década de 1540, escritos de Bernardo Vecchietti, importante patrono e membro do círculo de literatos dos Médici, oficializam a rivalidade histórica entre Leonardo Da Vinci e Michelangelo. A passagem escrita por Vecchietti descreve um encontro entre o pintor da Mona Lisa com seu rival enquanto passava pelos bancos públicos do Palazzo Spini Feroni, perto da Igreja de Santa Trinitá, em Florença, resultando em uma série de hostilizações entre os artistas.
De acordo com Vecchietti, Michelangelo teria sido o mais cruel nas palavras, principalmente ao envergonhar e ridicularizar Da Vinci por ele fracassar ao tentar entregar o projeto de uma estátua de cavalo em tamanho natural encomendada pelo Duque de Milão, Ludovico Sforza, em meados de 1482. “E pensar que acreditaram em você”, teria dito Michelangelo.
Michelangelo. (Fonte: GettyImages/Reprodução)
Os dois gênios não eram da mesma geração, tampouco compartilhavam do mesmo background social. Da Vinci nasceu em Anchiano, na Itália, em 1452, e era filho ilegítimo de um jovem advogado e de uma camponesa. Começou sua carreira como aprendiz de um pintor em Florença, desenvolvendo rapidamente habilidades excepcionais para a pintura, escultura, engenharia, anatomia e até ciência. Ele se tornou um dos símbolos do Renascimento, que aconteceu entre os séculos XIV e XVI, sobretudo após pintar A Última Ceia.
Michelangelo, por outro lado, nasceu em 1475, em Caprese, de uma família de classe média, que não era nobre, mas também não era pobre. Seu pai, Lodovico Buonarroti, era um funcionário público com várias conexões em Florença, o que deu a ele alguns privilégios, principalmente para seguir a carreira nas artes – talento que manifestou desde muito jovem. Esse apoio, no entanto, não veio em grande parte de Lodovico, que via a arte como uma profissão indigna.
O jovem Michelangelo ganhou notoriedade pela Itália quando terminou sua escultura de David, representando o herói bíblico que derrotou o gigante Golias com uma única pedra. A essa altura, ele já havia completado o seu Baco e a Pièta, em Roma.
Leonardo Da Vinci. (Fonte: GettyImages/Reprodução)
Da Vinci entrou em contato com a obra de Michelangelo quando foi nomeado para uma comissão que determinaria onde colocar David. Após muita deliberação, a enorme escultura foi instalada na praça fora do Palazzo dela Signoria (atual Palazzo Vecchio), sede do corpo dirigente da República de Florença.
Mas os caminhos dos artistas só se cruzaram mesmo no Salone dei Cinquecento ao serem contratados, em 1503, para um grande projeto no salão espaçoso. Michelangelo pintaria um afresco da Batalha de Cascina, travada contra os pisanos em 1364, enquanto Da Vinci faria uma tela de 7 a 18 metros de altura para representar a Batalha de Anghiari, de 1440. O afresco adjacente de Michelangelo deveria complementar a pintura de Da Vinci, e desenhos sobreviventes para o projeto demonstram a divergência em visão do que a arte deveria ser para cada um dos artistas.
Da Vinci queria retratar um conflito bestial de soldados montados a cavalos selvagens, com muita poeira e fumaça no ar, flechas chovendo de várias direções, homens lutando por suas vidas na água e na lama viscosa. Era para ser dramático, intenso e fílmico. A síntese do naturalismo.
Esboço da Batalha de Anghiari, por Da Vinci. (Fonte: Wikipedia/Reprodução)
Michelangelo, no entanto, já acreditava que o trabalho deveria retratar um momento de alarme humano, de medo, fragilidade e de assalto, exatamente como aconteceu quando os soldados banhistas saíram nus das águas ao serem alertados por um grito de urgência de que o inimigo estava prestes a atacar.
Os historiadores de arte apontam que é nítido como os artistas discordaram, não só pelo tempo demorado para começar o projeto – que nunca saiu do papel – quanto pelo embate de visões. Se as obras tivessem se concretizado, teríamos sido agraciados com dois tipos de duelos na mesma imagem: o humano, da batalha que aconteceu; e o filosófico, de homens que enxergavam os acontecimentos do mundo por lentes diferentes.
No final das contas, Michelangelo foi convocado para trabalhar para o papa em 1505, e Da Vinci informado pelas autoridades de Florença de que deveria retornar à Milão.