Como a indústria da carne cultivada em laboratório está sendo boicotada

15/02/2024 às 11:005 min de leitura

Os humanos foram feitos para comer o quê? Pensando em comportamento, nós somos onívoros, visto que comemos uma grande variedade de alimentos de origem tanto animal como vegetal. Por outro lado, biologicamente, falando em fisiologia e anatomia, temos características de herbívoros.

Em nenhum momento os humanos se assemelham aos carnívoros. Não possuímos a mesma abertura de mandíbula, posição dos dentes, extensão do trato intestinal, resfriamento de corpo, forma de deglutição ou volume e pH estomacal.

Apesar disso, humanos consomem uma média de 346 milhões de toneladas de carne por ano, sendo que há projeções de um aumento de 44% até 2030, alcançando 453 milhões anuais. Segundo uma pesquisa feita pelo Statista, cerca de 86% das pessoas entrevistadas em 39 países disseram que mantêm uma dieta com a presença de carne, apesar de fazer a substituição por outros tipos de fontes de proteína.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Os países mais carnívoros do mundo são os Estados Unidos, em primeiro lugar, com 120 kg de carne em consumo per capita por ano, seguidos pela Austrália, Uruguai, Argentina e Hong Kong. Atualmente, o setor da pecuária está estimado em US$ 838,3 bilhões, conforme as estatísticas de 2020 mostraram, com previsão de aumento para US$ 1,157 trilhão até 2025. Em 2018, o centro de estudos Faunalytcs estimou que mais de 70 bilhões de animais terrestres são abatidos para a indústria da carne anualmente. A organização Global Agriculture aponta que 60% das terras agrícolas do mundo são utilizadas para essa finalidade.

Pelos números, é possível entender o valor inestimado da pecuária para a economia, então a mera perspectiva desse ciclo de capital ser diminuído ou interrompido é coibida rapidamente por um lobismo muito bem estruturado. É por esse motivo que existe uma forte campanha para boicotar a carne cultivada em laboratório.

O hambúrguer de Mark Post

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

A indústria da carne e sua rápida aceleração ao longo do tempo, desde a segunda metade do século XX, é um problema que saiu de controle. Ainda que a carne signifique 2% das calorias diárias da dieta base do ser humano, sua produção é maior do que sua demanda e muitos especialistas a definem como um verdadeiro vício. Não é para menos que o nível de produção não só fez das fazendas industriais fábricas de incubação de patógenos que alcançam estados de hipervirulência, criando surtos que evoluem para epidemias e pandemias, como também afeta o planeta com seus níveis de emissões de gases de efeito estufa.

E isso não é tudo. Um relatório de 2019 emitido pela Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos diz que 40% da terra do planeta é coberta por fazendas. Enquanto isso, é estimado que 60% da população mundial esteja vivendo em centros urbanos até 2050, o que significa que é preciso encontrar moradia para cerca de 2,5 bilhões de pessoas até lá, sendo que a área urbana se torna um recurso cada vez mais limitado, refém da própria densidade demográfica. Ou seja, não temos mais espaço.

Foi pensando nesses aspectos insidiosos e no bem-estar dos animais que, em 2013, Mark Post, da Universidade de Maastricht, criou o primeiro hambúrguer de carne bovina cultivada em laboratório. O pedaço de carne foi feito a partir de células-tronco de uma vaca e composto por 20 mil fios musculares.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

O primeiro hambúrguer feito em laboratório custou cerca de US$ 325 mil (aproximadamente R$ 1,6 milhão), mas o aperfeiçoamento da tecnologia diminuiu seu preço. A startup holandesa Mosa Meat estimou que o preço da carne pode ser de US$ 80 por quilo (quase R$ 400) se conseguirem atingir a produção em larga escala. Isso significa que um hambúrguer de 140 gramas de carne custaria pouco mais que US$ 11, cerca de R$ 55.

A carne cultivada se lançou como uma alternativa mais consciente do que a carne bovina convencional porque requer 45% menos uso de energia e 99% menos uso da terra.

A campanha de boicote

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Bilhões de dólares foram investidos no setor de carne cultivada na esperança de que o produto seja mais ecológico que a carne bovina. Muito embora seja verdade que a carne de laboratório elimina os requisitos de terra, água e antibióticos da criação de gado, os pesquisadores acreditam que muito do interesse nesse segmento foi impulsionado por análises imprecisas de emissões de carbono.

É bom ressaltar, no entanto, que não há registros precisos de qual será o impacto da carne artificial no meio ambiente ou na saúde humana a longo prazo, nem das startups estadunidenses, como Good Meat e Upside Foods, tampouco dos especialistas em geral, muito menos da oposição. 

Até o momento, os únicos países que aprovaram a comercialização da carne artificial foram os Estados Unidos e Cingapura, e isso já foi o suficiente para que fosse criado um lobby altamente financiado para boicotar o produto, espalhar pânico e informações falsas por meio de anúncios de TV e na internet.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Em 2023, o Centro para o Meio Ambiente e Bem-Estar (Center for the Environment & Welfare, ou CEW), cujo diretor-executivo é Jack Hubbard, sócio da empresa de relações públicas Berman and Company, que tem um longo histórico de apoio organizações sem fins lucrativos que defendem os interesses da indústria alimentícia –, lançou uma campanha de informação pública com o suposto intuito de educar sobre a carne cultivada. A peça de propaganda faz uso de dados e análises inverídicas ou sem fundo científico para desacreditar essa nova indústria.

Hubbard alegou que a Bernman and Company ajuda a fornecer serviços para o CEW visando educar e informar os consumidores. Jessica Almy, vice-presidente sênior de relações públicas do Good Food Institute, uma organização sem fins lucrativos que trabalha para acelerar a adoção de alternativas à proteína animal, disse à Wired que o CEW é uma fonte de desinformação. “Acho que eles estão alimentando o medo sobre uma escolha clara e segura que está presente em alguns cardápios de restaurantes nos EUA e em Cingapura”, afirma ela.

Horizonte de incertezas

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

A Fox News veiculou um anúncio do CEW apresentando uma carne cultivada em uma feira de ciências escolar fictícia, em que era dito que as células da carne crescem como um tumor e são banhadas com produtos químicos. O CEW também se baseou em um artigo publicado pela Bloomberg Businessweek, em fevereiro de 2023, que levantou temores sobre células imortalizadas, para criar um site que compara as células usadas para cultivar carne de laboratório a células tumorais. 

Células imortalizadas são um tipo de célula valorizada pela indústria da carne cultivada porque se duplicam indefinidamente, tornando muito mais fácil o cultivo em abundância de carne a partir de pequenas amostras de células. Essa capacidade ilimitada de crescimento também é marca registrada das células cancerígenas, mas, fora isso, ambas não possuem relação.

Já ficou mais do que claro que as campanhas do CEW são montadas a fim de explorar os receios que as pessoas têm sobre novos alimentos. Não é para menos que em seu site existe uma seção com uma lista enumerando todos os tipos de produtos químicos que, segundo o CEW, podem ser usados na produção de carne cultivada. É bom ressaltar que nem o governo possui acesso à lista de componentes ou corantes usados pela indústria alimentícia na fabricação de alimentos ultraprocessados.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

A campanha mais recente do CEW criticou as credenciais ambientais da carne cultivada, citando um suposto estudo feito pela Universidade da Califórnia sobre o quão poluente essa indústria será, caso implementada. Amplamente divulgado na imprensa, o estudo apontou que seriam liberados 25 vezes mais emissões de gases de efeito estufa do que é necessário para processar a carne bovina tradicional. Isso porque os componentes da carne artificial só são possíveis de serem produzidos por meio de um processo misturando nutrientes de grau farmacêutico em um reator nuclear, purificados a um nível muito mais alto do que o comum.

O Good Food Institute rebateu que esses métodos de produção citados são improváveis. Outros estudos descobriram que a carne cultivada poderia ter emissões de carbono muito mais baixas do que a carne convencional, embora, até que os fabricantes aumentem a produção, seja difícil saber exatamente até que ponto a produção poderá ser intensiva em emissões.

A guerra entre carne cultivada e carne convencional está tão longe de acabar tanto quanto nós de saber se ela é benéfica, quase milagrosa, como diz ser, ou maligna como a oposição afirma. “Só podemos saber que não sabemos de nada”, já diria Tolstoy em seu Guerra e Paz.

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