Estilo de vida
03/12/2021 às 12:00•3 min de leitura
Conhecido como um dos truques de mágica mais populares de todos os tempos, a centenária arte de dividir um corpo ao meio com uma serra ganhou repercussão com o astro David Copperfield durante a década de 1980. No entanto, a história desse truque tem origem em algumas décadas antes, quando o criador original dele, no início dos anos 1920, planejou contra-atacar a mentalidade do sufrágio feminino de uma forma pretensiosa.
(Fonte: BBC/Reprodução)
Nascido em 1881, Percy Thomas Tibbles foi apresentado à mágica de palco em sua juventude, enquanto espionava um artista fazer seus truques no porão da casa de um ourives. Após anos de prática, o rapaz lançou seu nome artístico Selbit — Tibbles ao contrário — e tornou-se referência na área aos 19 anos, exibindo performances profissionais e escrevendo para uma revista do gênero, em que revelava truques de enganação, piadas e relatos sobre o universo místico.
Seus espetáculos contavam com muito conteúdo de autopromoção que, por meio de fortes campanhas de marketing por meio de ambulâncias de anúncio nas ruas, impulsionavam os quadros de ilusão e chocavam o público com a primeira mostra de uma mulher sendo serrada ao meio.
Mesmo com "litros de sangue" sendo derramados pelos assistentes, o que mais chamou a atenção do público foi o inusitado convite proposto por Selbit para que Christabel Pankhurst, a líder do maior movimento feminista e sufragista do Reino Unido na época, fosse a "vítima" no palco.
(Fonte: Wikimedia Commons/Reprodução)
Filha mais velha de Emmeline Pankhurst e cofundadora da União Social e Política das Mulheres (WSPU) em 1903, Pankhurst era conhecida por sua personalidade explosiva e temperamental, apresentando discursos apaixonados e confrontosos em encontros e locais públicos — atos que lhe renderam prisões por interromper uma reunião do Partido Liberal e por cuspir em 2 policiais.
Quando estava solta, Pankhurst era recorrentemente indiciada como foragida e configurava na lista da polícia como procurada por conspiração, favorecendo o ativismo militante e a ampla defesa do direito de voto para mulheres. Foi então que, em 1918, a família Pankhurst teve participação direta na sanção da Lei de Representação do Povo, que garantiu a participação legal de donas de propriedades britânicas com mais de 30 anos em eleições.
(Fonte: BBC/Reprodução)
Polarizadora e sem paciência para política, Pankhurst colocou anúncios em jornais buscando "emprego impessoal" e "trabalho remunerado e não político", o que imediatamente chamou a atenção do mágico Selbit, que viu uma oportunidade de ouro para explorar as ansiedades do público sobre o movimento pelos direitos das mulheres.
De acordo com a historiadora Naomi Paxton, o artista ofereceu a ela "o papel principal na performance", pagando cerca de 20 libras por semana, valor equivalente a mil libras (aproximadamente R$7,4 mil) na cotação atual. “O trabalho é de natureza apolítica”, escreveu Selbit, “e, além dessas taxas, todas as despesas de viagem vão ser pagas”.
A proposta de Selbit aconteceu três anos após a aprovação da Lei de Representação do Povo e foi interpretada como uma afronta com conotações políticas, por envolver homens restringindo e desmembrando uma das defensoras mais vorazes do feminismo na época. Paxton sugere que o ilusionismo da serra faz alusão a um "prazer macabro de ver um corpo feminino contido em perigo".
(Fonte: Getty Images / Reprodução)
“Há uma conexão real entre a ansiedade sobre o poder mutante das mulheres e o desejo de vê-las pela metade em público, para a alegria de centenas de milhares de pessoas”, disse Joanna Ebenstein, fundadora da Morbid Anatomy.
Desde então, com a recusa de Pankhurst em atuar como atração de palco no Finsbury Park Empire — local que sediaria a apresentação de Selbit — e sua consequente substituição pela ativista Betty Barker, o truque se consolidou mostrando mulheres como vítimas, enquanto a real história por trás de sua origem se oculta nos anais do ilusionismo moderno.