Ciência
08/12/2022 às 11:00•4 min de leitura
Era 30 de setembro de 2000 quando o cinegrafista palestino do canal France 2, Tala Abu Rahma, gravou o momento exato em que um pai e seu filho de 12 anos, Muhammad al-Durrah, lutavam pela vida em meio ao fogo cruzado no sul da cidade de Gaza.
Muhammad acabou sendo atingido e apesar dos esforços de seu pai, morreu logo em seguida. A fotografia do garoto gritando de puro pânico encolhido contra um muro se tornou uma das imagens mais poderosas da Segunda Intifada.
O governo israelense até tentou contestar a veracidade das imagens, negando que os militares e os soldados fossem os responsáveis pela morte da criança.
Tala Abu Rahma. (Fonte: Al Durah Project/Reprodução)
Às 10h do dia anterior à cena que impactou o mundo, Rahma recebeu uma ligação de Charles Enderlin, chefe do escritório da France 2 em Jerusalém, e foi comunicado que precisava voltar para a cidade de Gaza porque a situação na Cisjordânia estava piorando.
De 1993 a 2000, vários aspectos da ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza – um território de 365 km2 localizado na costa oriental do Mar Mediterrâneo – se intensificaram em vez de diminuir. Isso porque os palestinos esperavam que a vida melhorasse em questão de liberdade e posição socioeconômica, quando, na verdade, ambos pioraram, gerando um ressentimento significativo na sociedade. Alinhado com o fracasso dos acordos da Cúpula de Camp David, em julho de 2000, essa ira reforçou as bases para o apoio popular a uma abordagem mais confrontadora com Israel.
A Segunda Intifada começou em 28 de setembro de 2000, quando o então líder da oposição israelense Ariel Sharon provocou revolta ao invadir o complexo da Mesquita de al-Aqsa, na Jerusalém Oriental, com mais de mil policiais e soldados fortemente armados. O movimento foi recebido com indignação entre os palestinos que haviam acabado de marcar o aniversário do massacre de Sabra e Shatila, pelo qual Sharon foi considerado responsável após a invasão israelense ao Líbano.
(Fonte: Forbes/Reprodução)
Portanto, a situação estava a ponto de explodir e Rahma sabia disso, apesar do silêncio ensurdecedor em Gaza. Mas no sábado (29) pela manhã haveria uma manifestação na cidade, e o jornalista decidiu seguir para a Salah ad-Deen Highway, a principal rodovia da Faixa de Gaza, que se estende por 45 quilômetros, considerada um dos três pontos sensíveis da cidade naquele momento.
Rahma escolheu o local porque estava entre Erez e o outro ponto sensível ao norte de Gaza. Sendo assim, se algo acontecesse em qualquer outra região, ele conseguiria se mover rapidamente naquela direção.
Às 7h do sábado, o homem saiu em direção à rodovia bem na hora em que os alunos iam para a escola.
(Fonte: The Independent/Reprodução)
O conflito começou com pessoas atirando pedras, com a tensão aumentando de hora em hora, até que, às 13h, a cena já havia atingido um ponto caótico, com direito a gás lacrimogêneo e bala de borracha.
Segundo Rahma, em depoimento ao Al Jazeera, foi de repente que os tiros mortais começaram. Ele tirou a câmera do suporte, posicionou-a sobre o ombro e tentou captar quem estava fazendo os disparos, mas não conseguiu. Para não ser atingido, o jornalista se refugiou atrás de uma van com algumas crianças. Em meio aos sons dos disparos, o giroflex de ambulâncias se uniu ao coro para socorrer os feridos.
O tiroteio piorou a ponto de Rahma não ouvir o próprio coração batendo, e temer por sua vida ao cheirar a morte ao seu redor. “Havia sangue no chão. As pessoas corriam e caíam. Não sabiam de onde vinham as balas, só tentavam se esconder. Eu fiquei confuso sobre o que fazer, se continuava filmando ou fugia”, confessou ele.
Rahma estava muito preocupado pensando em sua família, conferindo incessantemente se não havia sido atingido, quando uma das crianças ao seu lado disse: “Eles estão atirando neles”. Foi então que ele viu o homem e o menino, Muhammad al-Durrah, contra a parede enquanto as balas choviam como pedras sendo atiradas.
“No canto à direita do homem, havia soldados israelenses e forças de segurança palestinas. O que eu poderia fazer? Eu não conseguia atravessar a rua. Estava muito movimentada e o tiroteio era intenso. Eu não podia fazer nada”, lembrou Rahma.
(Fonte: Al Jazeera/Reprodução)
As crianças ao lado do jornalista gritavam, desesperadas, tanto pelo homem e o menino, quanto por si mesmas. Rahma não tinha outra opção senão filmar toda a tragédia que se desenrolava diante de seus olhos. Foi assim que percebeu que Muhammad estava machucado na perna. Seu pai se feriu logo em seguida, mas continuou acenando e gritando.
Houve uma explosão e o ar foi impregnado por uma espessa fumaça branca. Assim que se dissipou, Rahma se deparou com o menino dobrado sobre o colo do pai com a barriga sangrando. O homem, por sua vez, estava imóvel contra a parede.
As ambulâncias tentaram alcançá-los várias vezes, e assim que conseguiram, Rahma pediu para ser levado com eles, mas o paramédico disse que não tinha espaço.
O jornalista só conseguiu deixar o local quando o tiroteio parou. A caminho de seu carro, enquanto tentava ligar para o escritório, Rahma encontrou um colega de emissora e mostrou o que havia filmado. O homem passou a gritar, desesperado: “Este é o Jamal e seu filho, Muhammad! Ai, meu Deus, ai meu Deus!”.
O homem era casado com a irmã da vítima.
(Fonte: Al Jazeera/Reprodução)
A partir do momento em que o France 2 recebeu as imagens, que foram ao ar às 20h do mesmo dia, Rahma começou sua jornada de responder perguntas de pessoas poderosas no governo e ter que lidar com as suspeitas da oposição de que tudo havia sido encenado.
“Para mim, o jornalismo é minha religião, a minha língua, não há fronteiras para ele”, disse Rahma. “Eu tinha uma resposta para eles sobre as dúvidas: a câmera não mente”.
O canal France 2 se comprometeu em não vender as imagens, mas distribuí-las de maneira gratuita. “Não vamos ganhar dinheiro com o sangue de crianças”, disse a emissora, e Rahma não poderia concordar mais.
O pai de Muhammad sobreviveu ao episódio histórico que assassinou seu filho, mas nunca encontrou justiça, tampouco superou a dor.