Ciência
19/06/2023 às 04:00•3 min de leitura
Nem sempre as histórias que nos marcam estão registradas nos livros. Em São Gonçalo do Amarante, cidade próxima a Natal, no Rio Grande do Norte, uma família conservou por séculos na memória romances vindos da cultura ibérica.
Benedita Maria do Nascimento, quando criança, ouvia seu pai, Atanásio Salustino, cantar aquilo que havia aprendido com seus antepassados. Isso ocorria enquanto eles teciam cestas e balaios feitos de cipó, uma tradição que dava sustento à família.
A menina ouvia o pai cantarolar coisas como "Dom Jorge eu ouvi dizer que tu tavas pra casar. É verdade, Juliana, eu vim te desenganar. Esperai, Rei Dom Jorge, que eu vou lá no meu reinado, vou ver um copo de vinho que eu pra ti tenho guardado". Ela ainda não sabia, mas o pai lembrava dos romances ibéricos da época medieval, e que foram trazidos nas caravelas pelos colonizadores europeus.
(Fonte: Ricardo Costa)
Segundo Maria Emília Monteiro Porto, professora de História Moderna e História do Brasil Colonial da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), os romances medievais do povo ibérico tinham características bem específicas, por influência da ocupação árabe na região.
"Essa ocupação acontece entre o século VII e só vai acabar no século XV, em 1453, e isso também provoca toda essa história de luta e heroísmo que vai ser a base desses romances, dessas histórias que são contadas. Inclusive, muitos temas do nosso cancioneiro nordestino vão lidar com essa briga entre mouros e cristãos", declarou à BBC.
Mas esses romances não estão necessariamente ligados ao texto escrito. Até por volta do século XV, a escrita ainda era rara. Por isso, as histórias eram cantadas, o que ajudava na memorização. E foi o compartilhamento pela oralidade que fez com que estes romances fossem durando até a época de Benedita.
Há cerca de trinta anos, ela foi convidada a compartilhar essas memórias de família com estudiosos. Contudo, na época, Benedita não foi autorizada pelo marido para participar. Foi apenas aos 76 anos que o seu conhecimento pode por fim circular.
Fonte: Poemia)
Os romances preservados pela memória da família Salustino também se misturam com as tradições do Nordeste brasileiro. São histórias elaboradas em diversos gêneros, como toadas de boi, modinhas, cantos religiosos e cordel.
Benedita se tornou então "romanceira". Sua irmã, Militana Salustino do Nascimento, falecida em 2010, também ficou famosa: ela era conhecida como "a maior romanceira de versos e histórias do país". Dona Militana ganhou notoriedade graças às pesquisas feitas pelo folclorista potiguar Deífilo Gurgel, falecido em 2012. Em 2021, ela foi homenageada com um "Doodle" dentro da página inicial do Google.
No ano de 2005, Militana recebeu do então presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, a Ordem do Mérito Cultural, comenda máxima da cultura brasileira. Segundo informam pesquisadores do folclore brasileiro, esta comenda foi importantíssima pois mudou o interesse das universidades em fazer estudos sobre o tema das tradições luso-brasileiras.
As duas irmãs foram e são vistas como guardiãs de um conhecimento que quase não existe mais. "Todo o saber de Militana é o mesmo de Benedita. Ela canta o que cantava Dona Militana e o pai: histórias luso-brasileiras. De amor, de poder, de grandes brigas, de cristão com os mouros e assim por diante", afirmou o padre André Martins Melo, historiador que registrou a vida de Militana.
(Fonte: Governo do RN)
O folclorista Deífilo Gurgel é um grande responsável pelo registro das histórias cantadas por Atanásio Salustino e suas filhas. Suas pesquisas deram origem a dois livros: O Romanceiro de Alcaçuz, publicado nos anos 1990, e Romanceiro Potiguar, lançado em 2012.
Advogado, administrador, antropólogo, folclorista e poeta, Deífilo Gurgel foi também professor da disciplina Folclore Brasileiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Seu trabalho na universidade possibilitou que muitos alunos tivessem encontros de pesquisa com Câmara Cascudo, tido como o teórico e pesquisador mais respeitado em trabalhos científicos e historiográficos sobre a cultura popular do Rio Grande do Norte.
Gurgel registrou no total 300 romances retirados das canções da família Salustino. "As primeiras questões da oralidade ibérica, os primeiros registros, as primeiras cantigas, vieram pra cá. Se o Rio Grande do Norte não é o maior está entre os maiores, sem dúvida alguma", informou Alexandre Gurgel, que é jornalista e filho de Deífilo.