Ciência
06/07/2023 às 13:00•6 min de leitura
Sendo um país onde a semana de trabalho pode chegar a 69 horas, a Coreia do Sul fabrica uma nação de pessoas solitárias, vítimas da cultura laboral brutal e incansável que ocupa o tempo dos prazeres mais simples do cotidiano, como as refeições.
Uma pesquisa realizada em 2023 pelo Ministério da Saúde e Bem-Estar da Coreia do Sul mostra que mais de 1,5 milhão de sul-coreanos correm o risco de uma "morte solitária" ou "morte não assistida". Isso representa quase 3% da população do país.
Aliada a uma cultura coletivista que os sul-coreanos são pressionados a seguir, a solidão facilitou o isolamento social como resultado de um sentimento de desesperança, uma busca interminável por um tipo muito específico de sucesso, a necessidade em se encaixar em uma ideia padrão de perfeição e os estereótipos geracionais.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Muitas dessas questões recaem de maneira direta sobre o governo sul-coreano, que não dispõe de redes de segurança, incluindo políticas que incentivem uma convivência social e vida saudável. Enquanto essa mobilização não acontece, as pessoas se apoiam em medidas paliativas para lidar com os efeitos da solidão e o mukbang foi uma delas.
Mas o que deveria ser apenas uma maneira de ter com quem conversar durante as refeições foi absorvido pelo capitalismo, transformado em câmara de eco para comportamentos problemáticos e um instrumento de alienação e controle.
Esse é o lado obscuro e problemático do fenômeno mukbang.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Da combinação das palavras meokja, que significa "comer", e bang-song, que seria "transmissão", o mukbang surgiu na Coreia do Sul em meados de 2010 como um subproduto da cultura alimentar do país. Lá, o jantar é considerado mais que uma refeição, mas uma atividade social. Não é para menos que uma porção padrão de comida em um restaurante sul-coreano é desproporcional para apenas uma pessoa.
Assim, dois fenômenos aconteceram: à medida que as pessoas começaram a entrar na vida adulta, morando sozinhas e tendo que lidar com a jornada laboral excruciante, ter um jantar solitário se tornou uma realidade cada vez mais comum na sociedade urbana sul-coreana.
A internet então foi a alternativa para tentar corrigir um pouco dessa solidão. A Coreia do Sul desfruta de uma das redes de internet mais rápidas do mundo, portanto, não é surpresa que 93% dos 51,74 milhões de habitantes tenham acesso a ela. Segundo um levantamento de 2022 feito pelo provedor de serviços de rede virtual chamado NordVPN, os sul-coreanos passam uma média de 51 horas por semana online, das quais 18 horas são relacionadas ao trabalho e mais de 20 horas por semana são gastas assistindo a conteúdo em streaming – o que é equivalente a 40% do tempo de vida.
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É impossível determinar o "paciente zero" do mukbang — aquele que não se sentiu acompanhado o suficiente pela tonelada de séries e filmes e decidiu que ligar uma câmera e se transmitir seria o mais adequado. A única coisa que se sabe sobre essa pessoa é que sua atividade começou no AfreecaTV, um site que transmite canais de TV e também permite que os usuários enviem seus próprios vídeos e programas.
A partir daí, os sul-coreanos começaram a ligar suas câmeras para interagir com uma audiência aleatória no site enquanto comiam. Mesmo acompanhados apenas virtualmente, eles foram invadidos por um sentimento de conectividade. Quanto mais comum o mukbang foi se tornando, mais os telespectadores passaram a fazer desde perguntas pessoais até dar sugestões sobre qual comida a pessoa deveria experimentar.
Tudo surgiu de maneira bem inocente, até que o capitalismo e a superpopularização da prática acontecessem.
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Quatro anos foram suficientes para que o mukbang perdesse seu propósito como uma comunidade para pessoas solitárias e alcancasse plateias e realidades que não compartilhavam do mesmo sentimento que os sul-coreanos. A popularização do mukbang coincidiu com a onda Hallyu, que acontece desde a década de 1990 e impulsiona a cultura coreana, de músicas a filmes, para o Ocidente.
Foi o capitalismo que fez as pessoas redescobrirem que o mukbang é a forma mais primitiva de Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano (ASMR), responsável por despertar uma sensação relaxante e duradora a partir do topo da cabeça. Nem Virgínia Woolf e Edgar Allan Poe, precursores da prática com suas descrições literárias minuciosas, tampouco os usuários solitários do AfreecaTV, conseguiriam prever que um dia as pessoas se tornariam famosas apenas por colocar um microfone muito potente perto da boca e mastigar de maneira exagerada a comida na frente de uma câmera.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
O mukbang achou sua casa rentável no YouTube, onde não só os vídeos poderiam ser assistidos por várias vezes de maneira incansável por plateias globais, mas também seus donos poderiam ganhar rios de dinheiro com a monetização deles — e não há nada de hipérbole nisso.
Um exemplo é o canal da sul-coreana Sulgi, fundado em 2012 e especializado em conteúdo mukbang e ASMR para uma plateia de 11,7 milhões de inscritos. Ele possui cerca de 615 vídeos que reúnem mais de 3 bilhões de visualizações. De acordo com uma estimativa da Net Worth Spot, acredita-se que Sulgi tenha um patrimônio líquido avaliado entre US$ 19 milhões e US$ 26 milhões.
Mas calma, a sul-coreana não apenas senta e come para seus seguidores — ela come muito!
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
A lógica é simples: quanto mais comida na boca, mais gatilhos ASMR serão provocados. Portanto, parece meio óbvio que alguém sugeriria que esses youtubers consumissem quantidades enormes de comida de uma só vez. É a mesma satisfação em assistir a um concurso de quem come mais cachorro-quente.
Em algum nível, os vídeos de mukbang podem servir para satisfazer desejos por comida de alguém que não teria coragem ou não conseguiria consumir 20 mil calorias em uma refeição, da mesma forma que outros espectadores estão ali apenas para serem beneficiados pelos aspectos mais barulhento dos ASMR nos vídeos. Nos últimos 3 anos, o interesse por esse tipo de conteúdo aumentou mais de 140%, sendo que o YouTube exibe mais de 5,2 milhões de resultados quando as palavras "ASMR" e "mukbang" são inseridas em seu campo de busca.
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Enquanto isso, por trás das câmeras, os comedores de plantão ganham peso, transtornos alimentares, incentivo dos seus seguidores e patrocínio financeiro das gigantes do varejo, de Taco Bell a KFC e McDonald’s. Em 2019, o youtuber americano Nicholas Perry, conhecido na internet como Nikocado Avocado, confessou para seus 3,62 milhões de inscritos que o mukbang o fez ganhar 90 quilos, despertando uma forte compulsão alimentar que o levou a um quadro de depressão profunda. Em 2021, o youtuber italiano Omar Palermo, que tinha 821 mil inscritos em seu canal Youtubo Anche lo, morreu de um ataque cardíaco em decorrência da ingestão excessiva de gorduras saturadas.
Mas esse é o século XXI, no qual o dinheiro é a arma mais potente que existe, portanto, não é difícil imaginar quem não seria capaz de dar o bote na oportunidade de se beneficiar de um grande influxo de dinheiro inesperado e fácil chegando pelo e-mail diariamente. Tudo o que a pessoa precisa fazer é ligar a câmera e anunciar o novo produto de alguma rede de fast-food para sua plateia. Em outros casos, por que não inventar uma mentira de que o interesse pelo produto é genuíno e não há nada de publicidade naquilo? Afinal, seria criminoso e problemático apenas se alguém descobrisse, não é mesmo?
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A questão é que o dinheiro nunca unificou nada, nem mantém bocas fechadas ou mentes sãs, pelos menos não por muito tempo. Em julho de 2020, o youtuber de nome Cham PD acusou vários colegas de profissão de não indicarem que estavam promovendo conteúdo patrocinado em seus vídeos e que teria provas sólidas disso.
Um estudo feito pela Korean Consumer Agency comprovou que, entre outubro e novembro de 2019, dos 582 anúncios postados nas 60 contas mais populares de mukbang no YouTube, apenas 30% indicavam conter material promocional no vídeo, classificando isso como propaganda velada.
Uma busca detalhada descobriu que muitos influenciadores de mukbang editavam seus vídeos de forma que os cortes não aparecessem, possibilitando que eles cuspissem a comida ou comessem menos do que seus seguidores imaginavam.
Youtuber Tzuyang em seu pedido de desculpas. (Fonte: Youtube/Reprodução)
Um escândalo ainda maior aconteceria, chegando aos mais influentes jornais da Coreia do Sul e tirando mais sujeira de baixo do tapete. A revolta dos fãs pelas propagandas veladas de canais famosos, como os dos youtubers Boki e Tzuyang, provocou uma onda de ódio que fez despencar drasticamente as visualizações dos vídeos e unsubscribes em massa.
Os vídeos de pedidos de desculpas se tornaram tão famosos quanto aqueles enchendo a boca de comida. Na Coreia do Sul, se desculpar é levado a sério a ponto de punições físicas serem tomadas, como o ato de raspar a cabeça ou apoiá-la no chão com as mãos cruzadas nas costas por um longo período de tempo a fim de demonstrar o mais profundo arrependimento e humildade.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Com isso, alguns youtubers foram resilientes o suficiente para continuar com a única ferramenta de trabalho que tinham, enquanto outros foram tão fortemente "cancelados" que apenas desapareceram da face da internet, deixando para trás sua fortuna e milhares de seguidores.
Em agosto de 2020, a Comissão de Comércio Justo da Coreia do Sul (STC) se reuniu com o presidente da Câmara de Comércio e Indústria, Cho Seong-wook, no Distrito de Jung, em Seul, para implementar uma regulamentação mais rigorosa sobre as plataformas de mídia social, com intuito de reprimir a prática de publicidade velada. A conduta levou órgãos legislativos dos Estados Unidos à França a implementarem medidas semelhantes.
O mukbang foi muito além de enganar sua plataforma para faturar enormes quantidades de dinheiro por pessoas que se deslumbraram demais com a facilidade em obtê-lo. Por trás dos comentários nos vídeos, existe uma audiência de pessoas doentes, compulsivas e viciadas em consumir o conteúdo. O mukbang deixou de ser um amigo para a solidão para se tornar uma ferramenta usada por algumas pessoas para reforçar quadros de bulimia e anorexia.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
O estudo publicado na revista Culture, Medicine and Psychiatry apontou que os cientistas descobriram que vídeos de mukbang que mostravam excessos eram assistidos com muito mais frequência do que vídeos em que as pessoas não comiam demais.
A questão é que todo o fenômeno mukbang é um reflexo da sociedade que, como o próprio Aristóteles pensava, se equilibra entre dois extremos: excesso e deficiência. São Tomás de Aquino preferiu sintetizar essa ideia como "gula", um dos "setes pecados capitais". A gula está muito longe de ser apenas o pecado de comer demais, é o desejo excessivo por qualquer coisa. E, apesar de ser difícil de combater, não é uma ofensa capital — pelo menos não aqui, pelo menos não por enquanto.