Ciência
12/03/2024 às 20:00•5 min de leituraAtualizado em 12/03/2024 às 20:00
A questão não é sobre por qual motivo ainda existem pessoas que comem cérebros de animais, mas sim por que os humanos não comem mais (pelo menos não em larga escala) esse órgão? Afinal, em vez de usar pedras afiadas para caçar e raspar a carne dos animais, há 2 milhões de anos, os primeiros hominídeos esmagaram crânios para colher os nutrientes gordurosos contidos na medula e no cérebro dos animais.
Às margens do que hoje é o sudeste do lago Victoria, no Quênia, achados arqueológicos dos nossos antepassados forrageadores (que viviam de plantas de pastagem e da carne de mamíferos pré-históricos com os quais compartilhavam o terreno) indicaram o acúmulo de crânios de animais de pequeno e médio porte.
A quantidade recuperada excede significativamente o número correspondente de outros ossos. Isso indica que os crânios dos animais foram separados do restante de suas carcaças, sendo que alguns carregam marcas de uso de ferramentas humanas, provavelmente para abrir as cavidades ósseas e consumir seu conteúdo.
O consumo do cérebro ainda é mais comum em algumas regiões e culturas do que em outras — normalmente em cozinhas asiáticas, como a chinesa, a indiana e a tailandesa, que desfrutam de pratos envolvendo cérebro de porco ou cordeiro.
No entanto, também é possível encontrar essa "iguaria" em cidades europeias famosas, como Sevilha, no sul da Espanha. Lá, em um restaurante econômico, é possível encontrar cérebro de bezerro refogado envolto por ovos acompanhado de algumas batatas.
Um cérebro típico tem cerca de 80% de água, 10% de gordura e 10% de proteína em peso, ou seja, mais magro do que muitas carnes. Além disso, um quarto de quilo de cérebro bovino contém 180% do valor diário de vitamina B12, e mais 20% de niacina e vitamina C; 16% de ferro e cobre; 41% de fósforo e mais de 1.000% de colesterol – um pouco parecido com uma gema de ovo. Então por que não comer o cérebro em vez de fazer dele apenas objeto de estudo?
"A maioria dos miúdos é muito mais fácil de lidar, mas, por alguma razão, cérebros estão em outro nível", disse o repórter Dennis Lee em uma matéria de 2018 para o The Takeout, ao preparar e comer um tradicional sanduíche com cérebro bovino, comum no sul dos EUA.
Em 1935, Steven Spielberg já colocava a personagem de Kate Capshaw — Willie Scott — no clássico filme Indiana Jones e o templo da perdição (1984) para desmaiar em um banquete em que são servidos cérebros de macacos congelados. Essa reação reflete a maioria do sentimento de repulsa das pessoas do século XXI, mostrando que a quantidade de importância ética que atribuímos às funções do cérebro o coloca na mesma categoria do coração: de alguma forma, ambos os órgãos se tornaram vitais demais para serem cozidos e servidos para consumo.
Ironicamente, no ano em que o filme de Spielberg foi rodado, cérebros de animais eram bastante comuns no cardápio básico estadunidense. Os miolos cerebrais eram considerados econômicos e suculentos, aparecendo em livros de receitas desde o final do século XIX como “uma boa maneira de aproveitar tudo o que um animal tem a oferecer”.
De meados dos anos 1900 até a década de 1970, quando os currais sulistas estadunidenses estavam funcionando e representavam um braço da economia local, os cérebros eram cortes que estavam prontamente disponíveis para a população. Um sanduíche de cérebro frito era perfeito para a classe trabalhadora que possuía jornadas de 12 a 14 horas de trabalho.
Na década de 1950, o pesquisador Ancel Keys conduziu estudos epidemiológicos que sugeriam uma associação entre dieta rica em gordura saturada e o aumento dos níveis de colesterol no sangue, podendo desenvolver placas de gordura nas artérias, conhecidas como aterosclerose. Essa ligação começou a ser estudada no início do século XX, mas só foi compreendida décadas depois.
Em seus Estudos dos sete países, Keys forneceu evidências sobre os padrões alimentares e sua relação com doenças cardiovasculares. Esse foi o primeiro prego no caixão do hábito de comer cérebro. Do ponto de vista nutricional, 12 fatias de bacon com dois ovos fritos contêm, 241% da dose diária de colesterol recomendada pelos órgãos reguladores dos EUA, sendo que uma porção de 85 gramas de cérebro de porco ao molho de leite contém, 1170%.
Quando esses dados foram passados ao público, o cérebro começou a se tornar um vilão na mesa dos americanos. Afinal, a melhor maneira de degustá-lo era com ovos e batata frita – a receita perfeita para um ataque cardíaco. E isso coincidiu com o desenvolvimento de fritadeiras comerciais mais seguras, que conquistaram a preferência dos americanos em busca de maior "crocância" em seus alimentos, coisa que o cérebro não tem.
É impossível falar sobre o início do declínio do consumo do cérebro de animais sem passá-lo por uma peneira social. Ainda que os estudos sobre a ingestão de altas quantidades de colesterol diário tenha alertado a população, o pós-guerra do século XX também contribuiu para que as pessoas começassem a torcer o nariz para a ingestão do alimento.
Tanto na América do Norte como na Europa, a prosperidade econômica e a intensa industrialização do setor da pecuária tornaram cortes de carne antes considerados selecionados e raros cada vez mais disponíveis aos consumidores. A carne vermelha se tornou "o símbolo do sucesso americano", como definiu o antropólogo David Beriss, enquanto as carnes de órgãos, bem como outras miudezas, passaram a ser vistas como o alimento da pobreza e da luta de classes.
Até o início dos anos 2000, o cérebro bovino ainda mantinha certo nível de popularidade, apesar das circunstâncias, mas despencou de vez quando ocorreram vários casos de Doença da Vaca Louca.
Cientificamente conhecida como Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB), é um dos poucos tipos de doenças neurodegenerativas que são fatais e transmissíveis aos seres humanos por meio da carne animal infectada. Ela é causada por uma proteína anormal chamada príon, que se acumula no cérebro e na medula espinhal dos animais afetados.
Esses príons são proteínas que surgem naturalmente, mas na forma anormal associada à doença se tornaram capazes de induzir mudanças na conformação de outras proteínas normais, levando à formação de agregados insolúveis. Estes causam danos aos tecidos cerebrais, resultando em sintomas neurológicos graves nos animais.
Os humanos que consumiam produtos contaminados pela proteína anormal contraíram a doença de Creutzfeldt-Jakob (vDCJ), a forma humana da EEB. Os sintomas incluem problemas neurológicos graves, como alterações no comportamento, distúrbios da marcha, deterioração da função mental e outros sinais de disfunção cerebral.
O caminho da doença é a degeneração generalizada do tecido cerebral, afetando múltiplas áreas do cérebro, incluindo o córtex cerebral, o tálamo e o cerebelo. Com isso, funções essenciais, como a capacidade de movimento, pensamento e controle motor, são comprometidas de maneira irreversível
Combinando a percepção que as pessoas passaram a ter do cérebro como um alimento "nojento", a sua alta taxa de colesterol e a aterrorizante ideia de poder contrair a doença da Vaca Louca, o órgão como alimento nunca mais recuperou sua popularidade inicial no gosto público.
O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos proíbe o uso de certos tecidos de animais ruminantes, como cérebro e medula espinhal, em produtos destinados à alimentação humana, visando reduzir o risco de transmissão da EEB para os humanos. Em amplo espectro, o país também proíbe a venda de cérebros de vacas com mais de 30 meses.
Até hoje, as regulamentações sobre o uso de carne de cérebro flutuam entre cada país, mas, ainda que o consumo tenha saído de moda, o item aparece ainda em alguns cardápios pelo mundo. Em Takashi, no West Village de Nova York, cérebros de bezerros são espremidos de um tubo sobre blinis de caviar (um tipo de panqueca russa).
E você, teria coragem de experimentar essa iguaria?