Artes/cultura
12/09/2024 às 18:00•4 min de leituraAtualizado em 12/09/2024 às 18:00
O começo do fim de governos sob moldes autocráticos é pelo povo, e a história já mostrou qual os únicos caminhos para esses líderes: renúncia ou morte. Foi assim, por exemplo, com Ferdinand Marcos, presidente das Filipinas por 21 anos, que acabou sendo forçado a fugir do país em 1986 devido a uma série de manifestações populares, episódio conhecido como Revolução do Poder Popular, em que o povo demandava o fim da violência do regime e a fraude eleitoral.
O governo de Muammar Gaddafi, por outro lado, levou não apenas a sua renúncia derradeira durante o período de revoltas da Primavera Árabe de 2011, como também ao seu assassinato. Gaddafi começou promissor, porém, ao longo dos seus quase 42 anos no poder, ele inventou o próprio sistema de governo, apoiou grupos armados radicais diversos e presidiu o que é considerado o regime mais arbitrário, brutal e totalitário do norte da África.
Portanto, Sheikh Hasina, primeira-ministra de Bangladesh, forçada por estudantes a renunciar, deveria saber melhor, considerando o que aconteceu com sua família, quando sua necessidade por controle subiu à cabeça.
O nascimento de Bangladesh foi violento e isso está intrinsecamente associado à história da família de Hasina. Seu pai foi apenas Sheikh Mujibur Rahman, considerado o fundador do país, responsável pela independência de Bangladesh em 1971, então Paquistão Oriental, após nove meses de uma guerra em que mais de 3 milhões de pessoas foram mortas.
Em 1975, Hasina e sua irmã sobreviveram ao golpe militar que assassinou Rahman e a maioria dos membros de sua família. A administração de seu pai enfrentou diversos problemas ao longo dos quatro anos que se seguiram a independência de Bangladesh, entre eles a criação de uma nova estrutura de governo e a estabilização econômica.
O país atravessou uma escassez de alimentos severa e inflação que debilitaram todos os aspectos da economia. O governo de Rahman também foi acusado de má gestão, corrupção, autoritarismo e incapacidade para lidar adequadamente com os desafios socioeconômicos do país. Tudo isso, associado à sensação de que os militares estavam sendo marginalizados, gerou uma insatisfação pública e aumentou a pressão sobre o governo, ocasionando sua derrocada.
Com a morte de Rahman, foi estabelecido um governo estatal de partido único liderado pelo partido socialista Liga Krishak Sramik Awani de Bangladesh, enquanto Hasina viveu por 6 anos exilada em outros países. Ela voltou a Bangladesh porque o seu partido, o Awami League, estava enfraquecido e sob ameaça de extinção. Com ela como líder, eles conseguiram restaurar sua influência política e recuperar as forças. Até que, em 1996, Hasina foi eleita primeira-ministra pela primeira vez, sob a promessa de que reformaria e modernizaria Bangladesh.
Em seus dois mandatos, Hasina cumpriu com o prometido e trouxe avanços no desenvolvimento e crescimento econômico do país, sobretudo no setor de vestuário, mas a oposição sentiu que os benefícios estavam concentrados principalmente na capital Daca e na elite do país. A oposição, especialmente o Partido Nacionalista de Bangladesh (BNP) e o Jamaat-e-Islami, criticaram os níveis crescentes de autoritarismo do seu governo, marcado por repressão da mídia e da dissidência, violação dos direitos humanos e prisões arbitrárias. Além disso, as eleições sob Hasina tiveram alegações de fraude eleitoral.
No começo de junho, um grupo de seis parentes de ex-combatentes veteranos da guerra da independência apresentou uma petição por escrito ao Supremo Tribunal contestando a circular emitida pelo Ministério da Administração Pública, em 4 de outubro de 2018, que cancelou o sistema de cotas que reservava 30% dos empregos no serviço público aos parentes daqueles que lutaram em 1971, após protestos sangrentos e massivos pelo país.
Em 5 de junho, o Supremo Tribunal emitiu o veredicto declarando ilegal a decisão de 2018 do governo de Hasina em descartar as cotas. Como esperado, a notícia desencadeou uma série de protestos de estudantes universitários, liderados principalmente pela coalizão Estudantes Contra a Discriminação, alegando que a decisão era tanto injusta quanto criminosa, e que apenas servia para favorecer os apoiadores do partido no poder.
Hasina fez da situação o seu cadafalso quando se recusou a atender às demandas dos jovens sobre a revisão dos procedimentos judiciais, chamando os manifestantes de “Rakazar”, um termo extremamente ofensivo que remete aos acusados de colaborar com o exército do Paquistão durante a guerra de 1971.
Aquele também foi o prenúncio para o desastre. Os protestos se intensificaram e estabeleceram um novo tipo de caos no país. Entre 15 e 20 de julho, a situação saiu do controle depois que a Liga Chhatra de Bangladesh, a ala estudantil do partido no poder, se juntou a polícia para atacar manifestantes estudantis em Daca como resposta, gerando um banho de sangue.
As autoridades recorreram a várias táticas para punir os manifestantes, incluindo o uso ilegal de armas letais e menos letais no policiamento de protestos. Só nesses 5 dias, mais de mil prisões arbitrárias aconteceram e pelo menos 187 manifestantes jovens foram assassinados pelo aparato de repressão. Hasina fechou as universidades e desligou a internet de Bangladesh como forma de impedir os esforços dos jornalistas e dos jovens em informar livremente as atrocidades que estavam acontecendo. Uma proibição geral de protestos foi emitida, restringindo ainda mais os direitos à liberdade de expressão e qualquer tipo de reunião.
Em 21 de julho, a Suprema Corte reduziu a cota de 30% para 5%, a essa altura, porém, a verdadeira guerra já não era mais sobre o sistema injusto, mas sim contra a retórica anti-protesto de Hasina, a repressão e os ataques pelos grupos afiliados ao seu partido Liga Awami. Tudo isso não apenas galgou como cimentou um sentimento de insatisfação massivo contra o governo da primeira-ministra.
Em 5 de agosto, após semanas de protestos e confrontos que mataram mais de 600 pessoas em Bangladesh, Sheikh Hasina se encontrou em um ponto de ruptura para o seu governo, pavimentado pelas suas próprias atitudes autocráticas. Não houve outra saída para ela senão abandonar o cargo de primeira-ministra após um governo de 15 anos.
Sua fuga para a Índia desencadeou um sentimento de revolta e mais violência por parte das bases do seu aparato de poder que permaneceram, mas que não foram páreos para a força do povo. A polícia desertou logo em seguida e grupos de jovens assumiram o controle de ministérios a gestão de tráfego. Além de pintar as ruas de Daca com as cores da revolução, eles se organizaram para proteger o país até que um novo governo interino liderado por Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, fosse empossado.
Ainda não há muitos detalhes sobre como esse novo governo será, mas, por enquanto, o alívio da queda da ditadora Sheikh Hasina parece ser o suficiente.