Cegueira vegetal: como os governos 'facilitam' o tráfico de plantas

12/11/2023 às 12:004 min de leitura

Em fevereiro de 2020 aconteceu a Operação Atacama, um esforço das autoridades italianas e chilenas junto a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), para resgatar espécies raras de cactos que foram ilegalmente traficadas. Mais de mil espécies foram confiscadas, todas avaliadas em US$ 1,2 milhão no mercado clandestino.

Dos gêneros Copiapoa e Eriosyce, as plantas crescem apenas em regiões áridas do norte do Chile, como o Deserto do Atacama, e são apreciadas por colecionadores e especialistas em paisagismo, que acabam recorrendo à clandestinidade para obtê-las, uma vez que o Chile não permite a exportação da planta. Centenas de cactos foram roubados da natureza entre 2013 e 2019, de acordo com representantes da IUCN. Infelizmente, daqueles que foram resgatados durante a Operação Atacama, 107 morreram antes que pudessem ser devolvidos ao Chile.

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

Atualmente, o preço do tráfico é muito alto para os cactos. Mais de 30% das quase 1.500 espécies de cactos do mundo estão ameaçadas de extinção – e isso é apenas a ponta do iceberg de um problema imenso. Uma equipe de cientistas da Universidade de Sheffield, da Universidade da Flórida e da Universidade Norueguesa de Ciências da Vida descobriu que o comércio ilegal internacional de espécies de plantas está causando declínios de cerca de 62% na abundância de espécies, com algumas delas sofrendo declínios de mais de 80%.

Uma pesquisa estimou que pelo menos 100 milhões de plantas e animais são traficados internacionalmente a cada ano, enchendo os bolsos de um comércio selvagem que arrecada entre US$ 4 a US$ 20 bilhões por ano. Em meio aos números do comércio selvagem desregrado, é tipicamente negligenciado o problema que o tráfico de plantas, fruto da "cegueira vegetal", é um fenômeno que a sociedade e os governos enfrentam: a tendência humana de ignorar amplamente a flora como componente essencial da vida.

A falta de empatia com as plantas

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

Em 1999, os botânicos Elizabeth Schussler e James Wandersee dissertaram sobre a incapacidade crônica de reconhecer a importância das plantas na biosfera e nos assuntos humanos. O conceito de "cegueira vegetal" é a ideia e classificação antropocêntrica equivocada das plantas como inferiores aos animais, e surgiu com mais força no boom contemporâneo de pesquisa e política sobre o comércio ilegal de vida selvagem.

Entre 2015 e 2018, as frentes internacionais organizaram reuniões políticas de alto nível em Londres, Vietnã e Botsuana para discutir como combater efetivamente o transporte por vias navegáveis. Em 2013, os Estados Unidos aprovaram a Ordem Executiva sobre o Combate ao Tráfico Selvagem, e em 2016, a Lei de Eliminar, Neutralizar e Interromper o Tráfico de Vida Selvagem (END). A União Europeia também estabeleceu o seu Plano de Ação contra o Tráfico de Vida Selvagem em 2016. O Banco Mundial até chegou a lançar o Programa Global de Vida Selvagem, com um fundo de US$ 131 milhões, definido como “uma abordagem coordenada multilateral para combater o crime contra a vida selvagem”.

Essa quantidade de iniciativas é, em sua maioria, cega no que diz respeito à preservação das plantas, ignorando sua relevância tanto na política quanto na pesquisa, porque os debates acadêmicos e governamentais ainda são centrados no comércio internacional de animais, especialmente elefantes, tigres e rinocerontes. Apesar de existir ampla literatura sobre o comércio ilegal de plantas, incluindo espécies de plantas medicinais e aromáticas e produtos florestais não madeireiros, elas continuam fora dos muitos estudos emergentes, recebendo pouca atenção, por exemplo, das agências de financiamento dos EUA e do Reino Unido.

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

É irônico pensar nisso, visto que as plantas constituem uma grande porcentagem das espécies protegidas sob a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens Ameaçadas de Extinção (CITES), criada em 1975. A flora representa 37% das cerca de 1.100 espécies protegidas no Anexo I, que lista as espécies mais ameaçadas, e 86% das mais de 37 mil espécies protegidas no Apêndice II, que elenca espécies que podem ser ameaçadas se o comércio ilegal não for combatido.

Em entrevista ao The New York Times, o geógrafo Jared Margulies, da Universidade do Alabama, disse: “O funcionamento básico do planeta pararia sem as plantas, mas as pessoas se preocupam mais com os animais”. Especializado em estudar os impactos de toda a cadeia do tráfico de plantas, Margulies ainda salientou que as plantas receberiam muito mais atenção se tivessem olhos e rostos.

E isso acontece devido a uma série de fatores, incluindo biológicos, envolvendo a cognição humana e outras características culturais. Afinal, tudo o que vemos não apenas é uma tradução da imagem projetada na retina. A percepção visual está envolvida fortemente na seleção, organização e interpretação das informações.

A destruição provocada pelo comércio ilegal

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

As plantas são comercializadas ilegalmente por vários motivos, desde produção de óleos essenciais até de medicamentos e perfumes. O tráfico delas faz parte do transporte por vias navegáveis interiores, que desde 2013 tenta ser coibido com afinco. Mais de 900 espécies de madeira estão ameaçadas por esse método, listado na CITES, incluindo mais de 200 espécies de jacarandás. Entre 2005 e 2014, 35% de todas as apreensões registradas no banco de dados World Wildlife Seizures do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) eram de pau-rosa, uma espécie de árvore nativa do Brasil.

Um relatório da Organização TRAFFIC sobre o uso e comércio legal de ingredientes vegetais selvagens indicou que 60% a 90% das plantas medicinais e aromáticas usadas no comércio legal são coletadas na natureza. O problema está na incerteza sobre como acontece a rastreabilidade e a documentação desse comércio "legal". O relatório mostra a necessidade urgente de os governos lançarem mais luz sobre o comércio legal de plantas reguladas pela CITES, porque pouco se entende sobre os padrões, processos e mecanismos dessa indústria.

Um artigo de 2022 da UNODC estimou que 95% dos medicamentos tradicionais tem base vegetal, sendo que as mesmas espécies utilizadas na produção de medicamentos às vezes são consumidas como alimento. De aproximadamente 390 mil espécies de plantas distribuídas pelo mundo, pelo menos 60 mil delas são usadas globalmente para fins medicinais, das quais apenas 26 mil têm seu uso bem documentado.

Combatendo o problema

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

Além de ameaçar espécies à beira da extinção, os crimes contra a vida selvagem e a exploração da natureza podem promover mudanças climáticas, bem como impactar negativamente a saúde pública devido à disseminação de doenças zoonóticas, como apontou o Relatório Mundial de Crimes contra a vida Selvagem.

A comunidade botânica já deixou claro que, para que a exploração ilegal da flora selvagem seja controlada, primeiro é preciso superar com sucesso a cegueira vegetal. Seria um bom começo a implementação de programas conservacionistas incentivando o comportamento de preservação das plantas.

Uma vez que pesquisas psicológicas demonstram que as pessoas são mais propensas a apoiar a conservação de espécies com características semelhantes às do homem, o apoio à conservação pode ser aumentado incentivando as pessoas a praticarem a empatia e o antropomorfismo.

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

Cerca de um terço da humanidade é dependente de florestas e produtos florestais. Aproximadamente 820 milhões de pessoas vivem em florestas tropicais e savanas em países em desenvolvimento. No Leste Europeu, 26% das famílias coletam plantas não madeireiras para sua subsistência, totalizando 23 bilhões de euros em valor econômico por ano. Esses produtos incluem bagas silvestres, frutos secos, cogumelos, trufas e ervas. A conversão de florestas, extração de madeira e comércio ilegal de plantas privam essas comunidades de bens essenciais.

Essa transformação política e social precisa acontecer o mais depressa o possível, visto que o status global das espécies vegetais e a probabilidade de sua extinção em um futuro próximo permanece pouco compreendida, devido exatamente à falta de pesquisas sistemáticas sobre essa questão. O potencial para superar com sucesso tanto a cegueira vegetal quanto o tráfico de plantas depende de encontrar fatores abertos à mudança.

NOSSOS SITES

  • TecMundo
  • TecMundo
  • TecMundo
  • TecMundo
  • Logo Mega Curioso
  • Logo Baixaki
  • Logo Click Jogos
  • Logo TecMundo

Pesquisas anteriores: