As lavanderias de Madalena: onde as mulheres eram 'purificadas'

15/01/2021 às 15:004 min de leitura

Influenciada pela Igreja Católica, a Era Vitoriana conseguiu cunhar a palavra “mulheres caídas”, que era usada, em referência aos anjos caídos que se converteram em pecado, para se referir àquelas mulheres que eram prostitutas ou que “perderam” suas virtudes por se relacionar com homens casados. A palavra “caída” ficou associada à espiral descendente que a mulher fazia, indo do sexo à perda de posição social, ruína em doenças, drogas e então a morte.

A sociedade era obcecada por elas, principalmente por significarem uma espécie de mácula, por isso que panfletos eram espalhados pelas cidades. Um deles, publicado em 1868, foi intitulado Resgate de Mulheres Caídas, uma proposta e oferecia abrigos gratuitos a essas mulheres para que elas pudessem se “reabilitar”. 

Com o início do século XIX, cresceu o interesse do governo, de filantropos e instituições religiosas na tentativa de “resgatar” de vez essas mulheres, enviando-as para conventos, casas e outros tipos de centro que forneciam instrução moral, religiosa e laboral para que elas pudessem ser “reeducadas” de uma vida pecaminosa.

Quando chegou ao final do século XIX, na Irlanda, a definição de “mulheres caídas” já valia para as mulheres em geral. Sendo prostitutas ou não, a maioria eram jovens atraentes que alguns homens se aproveitaram, enganaram e engravidaram, tornando-as mães solteiras. Nesse contexto, surgiram as lavanderias de Madalena.

“Lavando os pecados”

(Fonte: Pinterest/Reprodução)
(Fonte: Pinterest/Reprodução)

Em meados de 1765, a Igreja Protestante fundou o Asilo Madalena para Mulheres Penitentes em Dublin, o primeiro abrigo que serviu para “manter na linha” as mulheres e jovens mais vulneráveis que poderiam porventura cair nas “garras da prostituição”, uma atividade crescente na época.

Os asilos de Madalena sobreviveram por longos anos, e o século XX fez o Estado se apoderar do conceito inicial desses lugares para finalmente transformá-los em verdadeiras prisões, geridas pela Igreja Católica. 

As lavanderias de Madalena nasceram da “necessidade” que o governo viu de punir as “mulheres desviadas”, principalmente as mães solteiras, que eram consideradas a vergonha da sociedade. Elas eram encaminhadas para lá depois de serem separadas de seus filhos em falsos abrigos e conventos, como o do Bom Socorro.

Aparentemente, essas lavanderias pareciam só serem lugares onde elas lavavam as roupas, confeccionavam renda e costuravam. No entanto, no final das contas, as próprias mulheres “eram lavadas”: lavadas de sua humanidade e dignidade ao serem oprimidas física e emocionalmente, brutalizadas e até mortas sob a desculpa de que tudo passava de um “ensinamento” para “purificá-las aos olhos de Deus”.

Anos de podridão

(Fonte: Irish News/Reprodução)
(Fonte: Irish News/Reprodução)

A severidade das freiras tornava a vida nas lavanderias ainda mais humilhante e doentia do que já era, pois elas tratavam as mulheres como presidiárias, aplicando leis de silêncio absoluto e executando diversas torturas por minuto. Houve casos em que as mulheres foram despidas de seus nomes e de sua autoestima ao terem a cabeça raspada antes de serem colocadas em seus uniformes institucionais. Para as freiras, a redenção acontecia apenas por meio de métodos brutais.

“Um dia eu quebrei um copo e a freira disse: ‘vou te ensinar a ter cuidado’. Ela pegou uma corda e amarrou em volta do meu pescoço. Por três dias e três noites, eu tive que comer pendurada. Depois, tive que me ajoelhar e dizer: ‘Peço o perdão de Deus Todo-Poderoso, perdão de Nossa Senhora, e perdão das minhas companheiras pelo mau exemplo que dei”, revelou Marina Gambold à BBC, uma das 220 sobreviventes entre as 30 mil mulheres que foram confinadas em lavanderias pela Irlanda.

(Fonte: The Irish Times/Reprodução)

Só era permitido que as internas tomassem um banho por semana, por isso seus corpos fediam com o suor do trabalho intenso e da roupa suja que não podia ser trocada ou lavada. Além disso, as mulheres eram forçadas a se banharem com a mesma água que todas usaram. “Eu me lembro que os piolhos costumavam ficar flutuando na superfície da água, principalmente se você era uma das últimas a se lavar”, lembrou outra sobrevivente, Kathleen Legg, agora com 81 anos.

(Fonte: Pinterest/Reprodução)
(Fonte: Pinterest/Reprodução)

Mary Smith foi outra mulher encaminhada para a lavanderia de Sundays Well, em Cork (a segunda maior cidade da Irlanda), após ter sido estuprada por um homem desconhecido. As freiras disseram que ela estava lá para caso engravidasse. 

Smith teve a cabeça raspada e foi forçada a assumir um novo nome. Ela foi designada a um trabalho pior do que as suas companheiras, foi proibida de falar sob pena de ser açoitada e também foi obrigada a dormir do lado de fora da casa, no frio. O trauma bateu tão mais forte em Smith, que ela acabou perdendo a noção de tempo e espaço. “Para mim, parece que fiquei lá uma vida inteira”.

O poço de ossos

(Fonte: The Irish Times/Reprodução)
(Fonte: The Irish Times/Reprodução)

Em 1992, as Irmãs de Nossa Senhora da Caridade tiveram que vender um de seus terrenos onde havia uma lavanderia para poder cobrir dívidas, e um deles foi comprado por um incorporador imobiliário. Durante as obras no terreno, os operários encontraram 133 túmulos sem identificação, onde havia os restos mortais de cerca de 155 pessoas. 

O caso foi parar na mídia e se tornou um escândalo nacional quando os jornalistas descobriram que existiam apenas 75 certidões de óbito. A madre superiora do convento alegou erro administrativo, mas a história não se emendava. Os corpos foram cremados e enterrados em uma vala comum no cemitério de Glasnevin.

A descoberta provocou reações públicas, como o surgimento de testemunhas e levantes contra o governo irlandês para que ele endereçasse a culpa à Igreja Católica e levasse o caso para a ONU. Em 1996, a lavanderia da rua Gloucester, que abrigava 40 mulheres, em sua maioria idosas com deficiências, foi fechada, pondo um fim no sórdido sistema.

Com o silêncio ensurdecedor do Vaticano, só em 2001 que o governo irlandês decidiu se manifestar sobre o assunto por meio de um pedido formal de desculpas, no qual reconheceu o envolvimento do Estado na crueldade que foram as instituições. No ano seguinte, o cineasta Peter Mullan escreveu e dirigiu o premiado filme Em Nome de Deus (The Magdalene Sisters) que aborda o que aconteceu nas lavanderias.

(Fonte: Irish Examiner/Reprodução)
(Fonte: Irish Examiner/Reprodução)

Em 2013, Michael Higgins, presidente da Irlanda, começou um fundo de compensação às vítimas, mas as instituições religiosas se recusaram a contribuir. Segundo o Relatório McAleese de 2013, ainda não foi possível registrar o número de mortes ao longo dos anos devido ao sigilo dos arquivos detidos pelos poderes religiosos. Por outro lado, estima-se que mais de 2 mil crianças foram exportadas ilegalmente das lavanderias para lares adotivos de famílias ricas nos Estados Unidos.

Enquanto algumas ordens religiosas apenas prestaram suas condolências por meio de comunicados que lamentavam dizendo que as lavanderias “tiveram que existir” porque “faziam parte da cultura da época”, outras instituições culpadas não se pronunciaram até hoje ou negaram que tudo tenha acontecido. 

“Ninguém foi preso ou forçado contra sua vontade a ficar. Não houve trabalho escravo. É tudo mentira”, afirmou o presidente da Liga Católica em julho de 2013, em comunicado oficial.

No final das contas, ainda resta uma dúvida: como um sistema doentio como esse durou 231 anos?

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