Artes/cultura
31/08/2021 às 10:00•2 min de leitura
Foi no século IV que os povos desenvolveram o costume de enterrar os seus mortos nos pátios de igrejas, crentes de que assim eles estariam mais próximos de Deus e longe do Inferno. Esse hábito, no entanto, foi motivo de complicações através dos anos, principalmente na Europa no período de urbanização. A pobreza no manuseamento dos cadáveres causou perdas dos corpos em tempestades devido às covas rasas, e trouxe transtorno público com o cheiro de podridão durante os verões quentes.
Depois que a Peste Bubônica foi deflagrada pelo território europeu, no século XIX a medicina sanitarista ergueu campanhas para remover os corpos dos chãos das igrejas e enterrá-los em locais próprios para sepultamentos, temendo que a putrefação deles pudesse transmitir doenças. Assim nasceram os cemitérios.
O conceito de cemitério alcançou o Brasil Colônia em 1801, quando o país estava sob a regência de Dom João VI, que emitiu um decreto ordenando que os cadáveres fossem enterrados nesses campos abertos longe das áreas populosas — mas ninguém o obedeceu.
(Fonte: Ricardo da Costa/Reprodução)
Foi só em 1828, durante o reinado de Dom Pedro I, que a lei foi efetivada e o primeiro cemitério construído na cidade de Salvador — a contragosto da população —, quando médicos baianos chegaram da Europa com centenas de ideias higienistas e convenceram os legisladores sobre a necessidade de protegerem a população dos malefícios causados pelos “miasmas mefíticos” provocados pela decomposição dos cadáveres.
Do ponto de vista religioso, os baianos não pensavam de maneira muito diferente dos europeus com relação a enterrar seus mortos ao redor das igrejas, que representavam uma porta para o paraíso e o local ideal para a aguardada ressurreição prometida para no fim dos tempos.
(Fonte: 180 Graus/Reprodução)
A democracia de ser enterrado na igreja, que não fazia distinção entre classes sociais — só de raças — também era um dos motivos para as pessoas não quererem os cadáveres de entes queridos em locais feitos para os suicidas, criminosos, rebeldes, excomungados e escravizados, como o cemitério Campo da Pólvora. Fora tudo isso, os baianos também não queriam beneficiar empresários privados, em vez das irmandades religiosas.
Surgiram vários motins populares contra a proibição, sendo o de 25 de outubro de 1836, o mais famoso de todos. Conhecida como “Cemiterada”, a revolta reuniu uma multidão de mais de 5 mil pessoas, que destruiu a machadadas o cemitério do Campo Santo, em Salvador.
O local havia sido inaugurado três dias antes por uma companhia privada que teve o monopólio dos enterros na cidade por mais de 30 anos, visto que os médicos higienistas proibiram as igrejas de realizarem qualquer enterro em suas propriedades.
(Fonte: O Historiante/Reprodução)
A “Cemiterada” teve muita participação dos negros, que temiam acabar no Campo da Pólvora por seu papel na sociedade ser equivalente à remoção de lixo, já que o local era considerado pelo governo o destino de “negros pagãos”.
Em 1835, centenas de negros mortos em uma rebelião foram sepultados no Campo da Pólvora de maneira tão precária que a Câmara temeu que seus corpos resultassem em uma epidemia de doenças com os mais de 2 mil escravizados falecidos em Salvador entre 1825 e 1836.
(Fonte: Bahia Revista/Reprodução)
O temor de acabar naquele tipo de cemitério levou vários escravizados a se associarem a várias irmandades, muitas das quais formadas por africanos, visando um local adequado para serem enterrados.
Os escravizados pensavam na possibilidade de ocuparem um lugar melhor no pós-morte, diferente dos brancos, que com os cemitérios desejavam apenas reproduzir os privilégios desfrutados nesse plano.
Foi assim que o cemitério serviu para ressaltar as fronteiras sociais que sempre existiram.