Dramas históricos precisam ter compromisso com a realidade?

02/09/2021 às 12:005 min de leitura

Novelas, filmes e séries são obras de ficção, certo? Mas quando essas obras retratam figuras e acontecimentos históricos, a maioria das pessoas espera que aquilo que estão vendo seja o que realmente aconteceu ou que, pelo menos, se aproxime da realidade dos fatos e das pessoas retratados. Isso não é o que vemos em Nos Tempos do Imperador, a atual novela das 18h da Globo.

Curiosamente, nós também publicamos uma lista com 7 minisséries e novelas para conhecer mais sobre a História do Brasil, e um dos itens era a novela Novo Mundo, escrita pela mesma dupla de Nos Tempos do Imperador, mas que se passava no período da Independência.

Nos Tempos do Imperador se passa na época do Segundo Reinado, com recursos parecidos aos da novela anterior: um casal romântico fictício protagoniza a história, com figuras históricas como pano de fundo — dessa vez, o romance entre Dom Pedro II e a Condessa de Barral. Porém, o resultado está sendo bem diferente: a audiência está mais baixa do que nunca, e o público está criticando os vários erros históricos da produção. 

Entenda esse debate e o porquê esses erros podem ser um problema. 

Imagem: Notícias da TV/ReproduçãoImagem: Notícias da TV/Reprodução

Os vários erros históricos de Nos Tempos do Imperador

Vejamos o primeiro casal protagonista romântico da novela: Pilar é uma moça rica que quer ser médica, em uma época na qual apenas homens estudavam, e se apaixona por Jorge, um escravo que foge de seu dono e muda de identidade. Várias das sequências que mais geram críticas na novela envolvem ambos.

O casal birracial anda pela rua, trocando carícias livremente — isso em uma época em que muitos negros ainda eram escravizados nem eram considerados humanos por parte dos brasileiros. É factível a existência do casal, porém demonstrar o amor "à luz do dia" sem sofrer represálias não é algo que seria possível.

A cena mais incômoda foi quando Pilar acabou sendo impedida de morar na Pequena África, reduto dos negros libertos, e Jorge faz um comentário comparando o que houve com a moça ao racismo. Afinal, ter de buscar outro lugar para dormir não é nada perto de séculos de escravidão e da falta de direitos básicos.

Uma das autoras, Thereza Falcão, pediu desculpas pela tentativa de "racismo reverso" (tema que renderia um post só explicando por que isso não existe), mas a verdade é que essa cena só salientou vários outros erros da novela.

Para não nos estender demais, vamos focar na outra principal inconsistência: Dom Pedro II, interpretado por Selton Mello, retratado como herói romântico. Ele aparece na novela como um homem culto, calmo, justo e progressista. Culto, Pedro certamente era, já que se preparou desde que nasceu para ser imperador, mas extremamente justo e progressista são características que, no mínimo, dividem os historiadores. 

Isso porque Pedro II foi demasiadamente insistente na Guerra do Paraguai (dizimando ainda mais a população daquele país), além de ser conivente com a escravidão. É fato que a família real não tinha escravos e até ajudava a libertar alguns negros, mas colocar Pedro como um grande defensor da Abolição e herói justíssimo é forçar a barra. 

Só para constar: a Condessa de Barral era dez anos mais velha do que seu amante, Pedro. Escolher uma atriz jovem e bonita, como Mariana Ximenes, para interpretá-la, pode ser apenas uma escolha "mercadológica" com o intuito de tornar a novela "mais atraente". Porém, fazê-la parecer mais jovem do que Pedro (Selton Mello) não deixa de ser um erro histórico.

DCI/ReproduçãoDCI/Reprodução

Mas qual é o problema disso?

Algumas pessoas argumentam que a novela é uma obra de ficção e não um documentário — essa é a justificativa dos próprios autores, Thereza Falcão e Alessandro Marson. A questão é que, quando se usam nomes, locais e acontecimentos históricos para fazer ficção, isso pode causar uma confusão com a realidade. Afinal, livros e documentários têm menos alcance do que uma novela transmitida na TV aberta.

A historiadora Carla Menegat, uma das especialistas que enumerou os erros de Nos Tempos do Imperador no Twitter, comentou que, se a intenção era fazer pura ficção sem compromisso algum com a realidade, os autores poderiam ter partido para outro gênero: a fantasia. Esse é o caso de produções como Bridgerton, da Netflix, que até tem uma roupagem "de época", mas deixam muito claro que não tem nenhuma proposta de ser verossímil.

Menegat observa que não há nenhum historiador que poderia ter auxiliado na correção dos erros na ficha técnica da novela e relata a sua experiência como consultora em produções desse tipo: quase toda intervenção dela era vista como prejudicial à liberdade criativa. O que certos autores parecem não entender é que a criatividade é permitida, mas dentro do possível para o período retratado. Em resumo, é necessário criar algo sem ofender a inteligência do telespectador. 

Imagem: Adoro Cinema/ReproduçãoImagem: Adoro Cinema/Reprodução

Erros históricos são comuns no audiovisual

Para terminar, não vamos focar apenas as críticas a Nos Tempos do Imperador. A novela tem cenografia e figurinos impecáveis, como é padrão da emissora. Além disso, os autores devem receber elogios pela forma como retrataram a princesa Leopoldina em Novo Mundo.

Esse é um dos erros históricos mais cometidos nas obras sobre a Independência do Brasil: valorizar demais e glamorizar Domitila, marquesa de Santos e amante de Dom Pedro I, enquanto se esquece da importância de Leopoldina, esposa do monarca, para o processo. É possível observar isso em minisséries como O Quinto dos Infernos e Marquesa de Santos.

Outro equívoco que pode ser visto em dezenas de obras de época é a dos personagens "à frente de seu tempo". Tudo bem que estamos no século XXI e ressignificando muitos aspectos que a sociedade pregava no passado, mas é meio difícil acreditar em falas tão progressistas quanto um tweet de 2021, saindo da boca de pessoas do século XIX. Elizabeta, de Orgulho & Paixão, e Rosa, de Liberdade, Liberdade, são exemplos disso. 

Por fim, O Anjo de Hamburgo é outra produção dos estúdios Globo que ainda nem estreou e já está causando polêmica por inconsistências históricas. A série vai retratar a história de Aracy de Carvalho, que trabalhou no consulado brasileiro na cidade alemã e teria salvado famílias judias da perseguição nazista. O problema é que os documentos mostram que Aracy e seu marido, o vice-cônsul e escritor Guimarães Rosa, apenas fizeram seu trabalho ao conceder vistos para as famílias que pediam, sem nenhum heroísmo. Vamos ver o que vem por aí quando a série sair.

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