Saúde/bem-estar
26/09/2021 às 08:00•3 min de leitura
Neste post, nós vamos contar o interessante caso da disputa de narrativas entre uma revista norte-americana e outra brasileira no contexto da Guerra Fria.
Para começar, é importante entender que a Life era a revista semanal mais lida dos Estados Unidos (EUA), no início dos anos 1960 e que, naquela época, ela se alinhou ao governo do país na luta contra o comunismo. Afinal, havia pouco tempo que o regime tinha chegado à América, com a Revolução Cubana, e os Estados Unidos temiam que outros países latinos seguissem esse mesmo caminho. Esse temor, é claro, incluía o Brasil.
Em 1961, o então presidente dos EUA, John Kennedy (1917-1963), anunciou o programa "Aliança para o Progresso", que visava aproximar seu país do resto do continente. Para isso, ele deu ajuda financeira aos governos que permaneceram alinhados aos EUA e longe do comunismo de Cuba. Porém, mais do que uma disputa financeira e política, essa também foi uma guerra de informação e de propaganda. É nesse contexto que entra a revista Life.
Imagem: oldlifemagazine.com
"Para fazer sua parte" — e denunciar a ameaça do comunismo na América Latina — a revista Life escalou seu melhor fotógrafo, Gordon Parks, para vir ao Rio de Janeiro. A missão dele era tirar fotos de um pai cuidando de sua numerosa família, vivendo em meio à pobreza. O objetivo era dizer que esse tipo de homem poderia ser cooptado pelo comunismo.
Parks era um homem negro, conhecido por suas fotos expressivas sobre o racismo e as injustiças sociais. Quando ele chegou ao Rio de Janeiro, acabou não focando tanto no objetivo de seus chefes, mas sim na história e na personalidade de um garoto: Flávio, de 12 anos, que era quem cuidava dos irmãos em um barraco na favela da Catacumba.
É óbvio que os editores da revista — especialmente o editor-chefe, próximo da Casa Branca — deram um jeito de contar a história como queriam. Eles organizaram as fotos de Parks em um ensaio de 10 páginas, intitulado "Miséria, inimiga da liberdade". A reportagem ganhou até uma versão em espanhol, para a edição da revista distribuída na América Latina.
O texto que acompanhava as fotos não era nada sutil: falava que a pobreza daquela família poderia ser encontrada "em qualquer lugar da América Latina" e pessoas naquela situação eram suscetíveis à exploração política do regime castrista e comunista. Esse contexto, segundo a revista, explicitava a importância do programa "Aliança para o Progresso", de Kennedy.
Imagem: Unicamp
As fotos eram realmente impressionantes. Mostravam o tamanho da favela, crianças chorando sem cuidado e o menino Flávio tendo que amparar os irmãos. Até que, nas últimas páginas, ele aparece de cama, com uma legenda explicando que ele sofre de asma e desnutrição.
Logo, milhares de leitores da revista Life enviaram cartas e até doações para "salvar Flávio". Ele foi trazido para os Estados Unidos e tratado no melhor hospital de asma do país, sem custo. A foto — colorida — de Flávio recebendo cuidados foram a capa de uma edição seguinte da Life. A mensagem era clara: os EUA podiam ajudar a pobre América Latina.
O que eles não contavam é que os brasileiros — principalmente os cariocas — não iam gostar nada de serem retratados dessa forma. É importante lembrar que o Rio de Janeiro tinha recém-perdido o posto de capital do país para Brasília, e a elite local, assim como a imprensa, estava refletindo sobre o futuro da cidade.
Todos sabiam que a desigualdade existia, mas retratar esse aspecto como realidade geral e explorar nossa pobreza por razões políticas foram coisas que ofenderam muita gente na época.
Imagem: Unicamp
Uma revista se sentiu especialmente ofendida pela reportagem da Life: O Cruzeiro. Esta era quase o equivalente da publicação gringa aqui no Brasil — com reportagens semanais sobre o cotidiano do país. O que eles fizeram? Mandaram um fotógrafo, Henri Ballot, para mostrar que também existia pobreza em Nova York.
Ballot encontrou uma família de imigrantes porto-riquenhos, os Gonzalez, que viviam em uma área pobre de Manhattan. Ele recriou exatamente as mesmas poses e ângulos de Gordon Parks, porém com a família nos EUA. O texto de O Cruzeiro para ilustrar as imagens foi certeiro na comparação: "Como se a miséria fosse exclusivamente nossa. Não é".
As 10 páginas de cada revista — publicadas com 4 meses de diferença — são quase as mesmas: 1 foto de 2 páginas de uma menina com o pai; 3 fotos verticais com o bairro pobre e crianças chorando; 1 família dormindo amontada; 3 fotos de crianças se virando sozinhas e a última página impactante: um menino de cama.
A ideia era zombar do espetáculo que os americanos fizeram, levando Flávio para lá, sendo que há gente precisando dos mesmos cuidados ali mesmo, nos EUA. "Seria o caso, talvez, de trazê-lo ao Brasil", dizia a legenda. Que invertida!
Imagem: Unicamp
Depois da reportagem de O Cruzeiro, a polêmica só cresceu: a revista Time, da mesma editora da Life, disse que as fotos nos EUA tinham sido fabricadas, enquanto O Cruzeiro fez acusações parecidas sobre as imagens do Rio.
A questão é que a realidade — ou a pobreza e suas causas — não importava para nenhuma das duas revistas nem para os países. O que ambos os lados queriam mesmo era vender revistas e provar seu ponto de vista — a Life, especialmente, queria apoiar Kennedy. No fim das contas, a Aliança para o Progresso foi considerada um fracasso, e os EUA acabaram sendo um pouco mais "agressivos" para evitar o comunismo na América Latina, apoiando ditaduras de direita. Mas isso é assunto para outras publicações.