Artes/cultura
01/11/2022 às 11:00•3 min de leitura
A pandemia do coronavírus, que começou em março de 2020 e recolheu cidadãos do mundo todo para suas casas, temendo a doença devastadora que já matou mais de 6 milhões depois de quase 3 anos –, despertou um sentimento antigo, mas que nunca foi embora: o ódio aos asiáticos.
Pessoas gritando “você tem o vírus chinês, volte para o seu país” se tornou algo comum na internet e depois pelas ruas dos Estados Unidos, onde se concentra uma das maiores comunidades asiáticas do mundo. Os asiático-americanos foram coagidos em transportes ou locais públicos, perseguidos, insultados e até fisicamente agredidos.
(Fonte: The New York Times/Reprodução)
Só em 2021, a Stop AAPI Hate, uma coalização que rastreia incidentes de violência e assédio contra asiático-americanos e habitantes das ilhas do Pacífico nos EUA, relatou quase 3.800 casos de discriminação em 2020.
Esse discurso de que os asiáticos são os responsáveis pelas epidemias que devastaram a humanidade, é uma tradição de ódio pelo mundo, inclusive nos EUA, onde isso acontece desde o início do século XIX.
(Fonte: Literary Hub/Reprodução)
Em 6 de março de 1900, Wong Chut King, um imigrante chinês vendedor de madeira, foi o primeiro caso diagnosticado de peste bubônica nos EUA, em Chinatown, São Francisco, o mundo já conhecia a taxa de destruição da doença: cerca de 75 a 200 milhões de pessoas, entre 1347 e 1351 na Europa.
Depois de lá, a peste reapareceu de maneira esporádica, primeiro, no final da década de 1870 no centro-sul da China, então em um surto em 1893 que matou milhares de pessoas em Cantão, se espalhando ao longo de rios e rotas de vapor.
Antes de chegar em Wong Chut King, no final do século XIX, a doença foi identificada em um imigrante chinês nas ilhas havaianas, alcançando São Francisco por uma rota comercial regular.
(Fonte: SFGATE/Reprodução)
No início de 1900, a cidade californiana era suja, superlotada e corrupta – herança da Corrida do Ouro de 1848, que aumentou a população mais de 25 vezes, trazendo todo o tipo de pessoa para a cidade, inclusive os vigaristas. Cerca de 16% da população de São Francisco era chinesa e se concentrou no bairro de Chinatown, formando a segunda maior comunidade do mundo.
Apesar de a mão de obra dos imigrantes chineses ter sido responsável, por exemplo, por 90% da força de trabalho que construiu a ferrovia transcontinental, em 1882, eles enfrentaram a Lei de Exclusão Chinesa, que reprimiu fortemente a imigração e os sentenciou a um distrito congestionado e altamente pobre da cidade, com edifícios de madeira esculpidos em espaços minúsculos.
(Fonte: Wall Street Journal/Reprodução)
O primeiro caso da peste estremeceu a sociedade e autoridades de São Francisco, que colocou Chinatown em quarentena rapidamente, e inflamou o sentimento anti-asiático que já acompanhava a cultura norte-americano.
Como leprosos, os chineses foram isolados no distrito sem acesso até mesmo à comida, consequentemente causando uma derrota dos negócios locais porque muitos cozinheiros e faxineiros moravam em Chinatown. As autoridades iniciaram uma brigada para fumigar a área, e o destacamento anti-infecção do governo saqueou casas, queimou pertences dos moradores, e marretou lojas em um esforço para tentar livrar a área da doença.
(Fonte: Science History Institute/Reprodução)
Os 20 mil moradores de Chinatown ainda foram submetidos a uma vacina bruta com diversos efeitos laterais, incluindo dores horríveis pelo corpo e dormência persistente. No entanto, os nativos de São Francisco não receberam nada, nem sequer foram alertados sob medidas de proteção ou segurança, porque para o governo estava claro: o problema eram os chineses.
Essa ideia se apoiava em um estereótipo clássico difundido através dos séculos que os imigrantes são "sujos", e as autoridades locais da cidade enlouqueceram quando ouviram sobre supostos navios da peste chegando de portos asiáticos, entendendo que a doença se espalharia diretamente a partir de locais superlotados, como Chinatown, onde havia uma alta concentração de imigrantes pobres.
(Fonte: Colorlines/Reprodução)
“Então, quando a praga aconteceu, reabasteceu, aumentou e intensificou os sentimentos anti-chineses”, disse Jonathan H.X. Lee, professor de estudos asiático-americanos na San Francisco State University.
Enquanto jornais apresentavam caricaturas anti-asiáticas e os norte-americanos brancos praticavam violência contra os asiático-americanos pelas ruas, em 1901, o médico Rupert Blue, aos 32 anos, responsável por fundar o moderno Sistema de Saúde Pública dos Estados Unidos –, rastreou as origens da praga em pulgas que se alimentavam de ratos infectados e se uniam a humanos em busca de sangue fresco, e descobriu que o fim do surto aconteceria através da imposição de técnicas básicas de higiene e controle de doenças.
As autoridades de saúde limparam o lixo da cidade para manter os ratos afastados, entraram em casas, clubes, igrejas e outros locais para conscientizar sobre como as pessoas deveriam fazer o descarte do lixo em lixeiras de metal com tampas.
(Fonte: Today/Reprodução)
Foi assim que São Francisco conseguiu chegar ao último caso diagnosticado de peste bubônica em 1908, após 120 mortes registradas ao longo de 8 anos. Para Marilyn Chase, escritora de The Barbary Plague, the Black Death in Victorian San Francisco, o que aconteceu na cidade foi uma espécie de mini conto de moralidade.
“Gostamos de pensar que fizemos um grande progresso e somos uma sociedade mais esclarecida. No entanto, epidemias e pandemias ameaçam essa linha tênue de esclarecimento científico e humanismo, justiça social e progresso, se não tomarmos cuidado. Então ainda temos muito a aprender”, escreveu ela.