Ciência
09/12/2022 às 10:00•2 min de leitura
Aurora Cursino dos Santos foi uma mulher brasileira que viveu entre 1896 e 1959. Vítima de transtornos psiquiátricos graves, Aurora entrou para a posteridade por duas razões: ela foi prostituta e desenvolveu uma instigante obra nas artes plásticas durante o período em que esteve internada. A artista pintou mais de duzentos quadros que seguem sendo estudados até hoje.
(Fonte: Amazon)
Nascida em São José dos Campos, Aurora casou obrigada pelo pai. Mas o casório duraria menos que um dia: ela fugiria do marido e optaria pela separação.
Entre 1910 e 1930, ela se prostituiu no Rio de Janeiro e São Paulo. Com o dinheiro do trabalho, Aurora viajou para a Europa e se dedicou às artes. Era grande fã de literatura, artes plásticas, música popular e erudita.
Em 1919, ela foi violentada por um jornalista a quem se recusou a atender. Ele a atacou com mordidas e arrancou sua blusa. Aurora tentou denunciá-lo à polícia, mas não deu em nada. Na época, vigorava penas leves para quem estuprasse "mulher pública ou prostituta".
Decepcionada com a boemia, Aurora resolve fazer um curso de enfermagem e trabalha como doméstica em várias casas. Sem dinheiro, acaba caindo nos albergues e, por fim, é internada em diferentes manicômios.
Lá, acaba frequentando um ateliê improvisado de arteterapia, comandado pelo psiquiatra Osório César, que fazia um trabalho inovador do Brasil. "Eram práticas de linguagem que estimulavam a autoexpressão dos ditos pacientes, de seus conflitos, suas dores. Partia-se do pressuposto de que a arte havia sido fundamental na construção do espírito humano e que, portanto, ela seria igualmente importante na reconstrução desse espírito, em casos de perturbação mental grave", comenta o psicanalista Joel Birman.
Deste modo, Aurora conseguiu desenvolver seus talentos e manifestar seus sentimentos através da arte. Segundo investigado em matéria da Folha, ela foi internada por conta de sua "personalidade psicopática amoral", que era um diagnóstico relacionado ao seu histórico de prostituição.
(Fonte: Folha de São Paulo)
A sua trajetória e a análise de suas obras foram registradas recentemente no livro Aurora: Memórias e Delírios de uma Mulher da Vida, baseado em um estudo de Silvana Jeha, doutora em História pela PUC-Rio, e Joel Birman, professor do Instituto de Psicologia da UFRJ.
Já na introdução do livro, os autores escrevem: "puta, louca e finalmente artista, ela condensa em sua obra algo que diz respeito a todas as mulheres". A isto, Silvana Jeha complementou em entrevista à Folha de São Paulo: "Sobretudo, o que ela pinta é o patriarcado. Os quadros dela são basicamente um ataque do patriarcado à mulher. Se alguém desenhou para mim o que é o patriarcado, foi a Aurora".
Sua obra foi exposta pela primeira vez em 1950, quando Osório levou alguns de seus quadros para a Exposição Internacional de Arte Psicopatológica, na França. As pinturas têm como marca as cores fortes que misturam texto e imagem. Em torno dos desenhos, há sentenças verborrágicas, frases como "Deus me livre, senhor Jesus"; "Enfermeiras me asfixiaram nas águas e me apunhalaram"; "Derramei sangue muitas vezes", "Caí no chão quase morta, tanto fazia eu vir da rotunda ou de baixo".
"Aurora nos fornece um testemunho sobre a condição da mulher na primeira metade do século XX. Ela aborda o feminicídio, a violência de gênero e outras questões que somente agora têm sido nomeadas. Hoje em dia, existe todo um vocabulário novo para designar aquilo que a mulher sofre desde sempre", declarou a historiadora Silvana Jeha em entrevista à BBC.