Saúde/bem-estar
19/04/2024 às 20:00•5 min de leituraAtualizado em 19/04/2024 às 20:00
Bertha Pappenheim foi o caso que fundou a psicanálise. Nascida em 27 de fevereiro de 1859, em Viena, Bertha era filha de Sigmund Pappenheim, responsável por herdar uma empresa de comércio de grãos considerada milionária, e de Recha Goldschmidt, cuja árvore genealógica tinha nomes como Heinrich Heine, um famoso poeta alemão conhecido como o "último dos românticos" por fazer parte do ultrarromantismo do século XIX.
Portanto, por ter uma vida de classe média alta, a jovem foi desde muito cedo sufocada com todos os tipos de privilégios que uma dama daquela época poderia receber. Além de uma educação religiosa com base em textos hebraicos e bíblicos, Bertha também estudou inglês, francês e italiano, bem como tomou aulas de piano e equitação.
Ela sempre se mostrou muito enérgica e animada, até que seu comportamento começou a mudar após seus 20 anos.
A princípio, os primeiros sintomas apareceram devagar. Bertha criou um mundo de fantasia que chamava de "teatro privado", depois, no outono de 1880, quando já havia completado seus 21 anos, ela se afundou na doença. Aconteceu bem na época em que Bertha cuidava de seu pai, acamado devido a uma pleurisia (uma infecção dos tecidos que revestem os pulmões e a caixa torácica) que o acometeu durante as férias da família em Bad Ischl, na Áustria. Infelizmente, a doença seria fatal, acabando com a vida do homem em 5 de abril de 1881.
Enquanto cuidava de seu pai, Bertha começou a apresentar sintomas físicos de sua doença, como tosse persistente, alucinações, paralisia, distúrbios de visão e um estado perturbador de ansiedade. No final de novembro de 1880, sua mãe contatou um médico amigo da família, Josef Breuer, então um respeitado internista e considerado o médico da alta burguesia judaica.
Na época, ele diagnosticou Bertha com histeria, descrita como uma condição mental que afetava as mulheres e que levava a sintomas como cegueira, explosões emocionais, alucinações e comportamento histriônico. A jovem foi submetida a várias sessões de leve hipnose em que ela podia narrar as coisas que estavam em sua cabeça. Mais tarde, essa abordagem seria conhecida como catarse, um precursor do método psicanalítico.
Apesar do estado geral de Bertha continuar se deteriorando ao longo do processo, ela conseguiu acessar e expressar emoções e experiências reprimidas. Breuer percebeu que fazer a jovem falar sobre o que estava em sua cabeça parecia oferecer certo alívio dos sintomas físicos que sentia. O médico apelidou esse tratamento de "cura falante".
O estado de Bertha piorou após a morte de seu pai. Rígida em cima de uma cama e sem comer por dias, ela não via as pessoas ao seu redor e reconhecia apenas Breuer.
Em 7 de junho de 1881, a jovem já havia perdido totalmente o controle de si, sendo levada à força a uma ala para distúrbios nervosos de uma clínica psiquiátrica em Inzersdorf e sedada com grandes doses de hidrato de cloral. Aquele foi o início do seu vício no medicamento.
A essa altura, Breuer já havia informado seu amigo Sigmund Freud sobre o caso da jovem e ele já estava certo de que o problema de Bertha não era histeria, mas algo além. Freud nunca chegou a conhecer pessoalmente a jovem, mas seu caso serviu de base para o seu livro Estudos sobre a histeria, de 1895, em que foi mencionada sob a alcunha de Anna O., cuja histeria foi descrita por ele como enraizada no abuso sexual que poderia ter sofrido na infância.
Foi, inclusive, essa insistência de Freud na violência sexual como causa que fez Breuer romper a amizade que possuía com ele. Apesar disso, Bertha, continuou sendo a peça central para o trabalho de Freud em desenvolver a terapia da fala como um tratamento para a doença mental.
Não é para menos que o próprio Freud descreveu Bertha como "a responsável pela fundação da abordagem psicanalítica do tratamento de saúde mental", que ele formalizou em seu livro A interpretação dos sonhos, em que se encontra grande parte da teoria psicanalítica.
Breuer escreveu que Bertha se recuperou completamente em 7 de junho de 1882, um ano depois de ter sido institucionalizada em Inzersdorf. Segundo ele, a cura dela aconteceu no momento em que reviveu a cena ao lado do leito de morte de seu pai, um evento que teria sido responsável por desencadear a doença.
Uma vez curada, Bertha teria viajado por um tempo até se estabelecer ao lado de sua família novamente. Breuer ressaltou que o tratamento por meio da "cura falante" foi um grande sucesso terapêutico, mas a história verdadeira é muito diferente.
A pesquisa dos historiadores Henri Ellenberger e Albrecht Hirschmuller descobriu, por meio de uma carta de Breuer ao seu colega psiquiatra Auste Forel, que o tratamento de Bertha nunca apresentou nenhum progresso significativo e que, no outono de 1881, ele já pensava em interná-la novamente, dessa vez no Sanatório Bellevue, na Suíça.
Para piorar, em uma carta de 31 de outubro de 1883, enviada por Freud à sua noiva Martha Bernays, ficou claro que Mathilde Breuer, esposa de Josef, havia desenvolvido um forte ciúmes pelo interesse e convívio extenso do seu marido com a jovem. Com isso, supostos rumores que passaram a circular pela sociedade da época teriam feito o médico decidir encerrar o tratamento de Bertha em junho de 1882, sendo que ela ainda sofria de uma leve "loucura histérica".
Em 1 de julho de 1882, Bertha foi admitida em um novo sanatório. Ela passou alguns meses na instituição, onde teve vários episódios com mais ou menos os mesmos sintomas de antes, além de ter piorado em relação ao vício em cloral e morfina devido à neuralgia facial aguda que tinha.
Breuer se recusou a retomar o tratamento quando Bertha regressou à Viena no início de janeiro de 1883. Entre esse ano e 1887, a mulher foi parar três vezes em uma clínica psiquiátrica sob o mesmo diagnóstico prévio de histeria. Martha Bernays, noiva de Freud, foi a única que manteve contato próximo com Bertha, a quem o médico chegou a desejar que estivesse morta para que ela se livrasse do sofrimento que era sua vida.
Freud sempre enfatizou em suas correspondências que a mulher estava arrasada devido às alucinações que sofria e que não havia recuperação para ela. Provavelmente, Bertha concordava com isso, afinal, cinco anos após o fim do tratamento com Breuer, ela ainda não havia se recuperado.
Em meados de 1888, Bertha se mudou para Frankfurt, onde a maioria de seus parentes por parte de mãe vivia, e foi lá que sua mente conturbada encontrou algum alívio, mas só porque também se encontrou como pessoa. Por incentivo de sua prima, a escritora Anna Ettlinger, ela começou a escrever o que estava em sua cabeça, passando tudo para as páginas em forma dos mesmos contos de fadas que narrava sobre suas emoções para Breuer.
Surpreendentemente, esse processo parece ter sido muito mais terapêutico do que a "cura falante" do médico — isso porque Bertha renasceu para a vida em todos os aspectos. Em 1890, ela publicou uma segunda coleção dos contos antes de se enveredar pelo campo do trabalho social judaico. Ao participar como voluntária em cozinhas comunitárias para imigrantes da Europa Oriental e em um orfanato para meninas judiais, do qual se tornou proprietária, Bertha desempenhou um papel essencial na comunidade judaica da época, sobretudo no que diz respeito ao movimento feminista alemão.
Em poucos anos, de uma "histérica e viciada em remédios", Bertha Pappenheim se transformou em uma escritora líder do feminismo judaico, publicando vários livros e ensaios, como o Women’s Rights, em que criticou ferrenhamente a exploração econômica e sexual das mulheres. Enquanto isso, sua vida pregressa como histérica, da qual ninguém fazia ideia, continuou paralelamente no campo da psicanálise, crescendo sob a alcunha de Anna O.
De acordo com Kendra Cherry, especialista em reabilitação psicossocial, educadora e psicóloga, a condição de Bertha hoje poderia ser diagnosticada como algum tipo de transtorno dissociativo ou somático. Alguns especialistas, no entanto, acreditam que a condição da mulher poderia ter sido resultado de algum tipo de doença física ou neurológica, como uma inflamação cerebral ou uma neurotuberculose.
Bertha Pappenheim morreu em 28 de maio de 1936 como um expoente da defesa feminina judaica, e não como a histérica descrita por Freud e Breuer.