Ciência
21/07/2021 às 14:00•3 min de leitura
O Brasil tem mais de 16,8 mil quilômetros de fronteiras terrestres, estando em contato com outros nove países da América do Sul: Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname, além da Guiana Francesa. Mas nossas divisas são relativamente simples, sendo fácil descobrir onde termina um país e começa outro.
Não é exatamente isso que acontece na fronteira maluca entre Índia e Bangladesh.
Isso porque os dois países tinham centenas de enclaves, um no território do outro, até alguns anos atrás. Enclaves são territórios de um estado completamente cercados pelas terras de outro estado soberano, sem contato físico com o resto das terras de seu país. Isso quer dizer que, para acessar o próprio país, as pessoas que estão num enclave tem que, necessariamente, passar por outro.
O Brasil não tem nenhum enclave, a não ser ao nível municipal, com algumas cidades que são completamente cercadas por outra. Mas na fronteira entre Índia e Bangladesh, isso foi um problema por muitos anos.
Existiam 71 pedacinhos de Bangladesh dentro do território indiano e outros 102 porções de terra da Índia dentro do país vizinho. Como se isso não bastasse, existiam também enclaves dentro dos enclaves: 21 contra-enclaves de Bangladesh e três contra-enclaves indianos. Mas a loucura da fronteira vai além: havia um enclave de terceiro grau.
Isso quer dizer que havia um pedaço de terra pertencente à Índia, dentro de um enclave de Bangladesh, dentro de um enclave indiano no território de Bangladesh. Praticamente uma boneca russa, só que feita de países e fronteiras.
Veja no mapa: Bangladesh está em verde e a Índia em laranja. Os pontinhos de cores diferentes são os enclaves de cada país.
As centenas de enclaves indianos e bangladenses (Imagem: Wikimedia Commons)
Isso quer dizer que, se um indiano que morasse no enclave de terceiro grau quisesse ir até a capital do seu próprio país, Nova Delhi, ele precisaria atravessar quatro fronteiras internacionais. Ainda bem que, na prática, a terra de Dahala Khagrabari era apenas uma fazenda e ninguém morava ali. Além disso, as fronteiras não são cercadas.
Ainda assim, era um problema para essas pessoas viver nessa bagunça entre países, já que a região era bastante carente de serviços públicos. Cerca de 51 mil pessoas viviam nesses enclaves, de acordo com um Censo feito pelos dois países em 2010.
O enclave de terceiro grau de Dahala Khagrabari (Imagem: Wikimedia Commons)
Diz a lenda que essa bagunça na fronteira entre Índia e Bangladesh começou porque os monarcas de Cooch Behar e Rangpur apostavam porções de terra em jogos, mas não há comprovação histórica dessa teoria. O mais provável é que os enclaves tenham sido definidos em acordos de paz entre os reinos da época.
Naquela época, as fronteiras nacionais não faziam tanta diferença no cotidiano e, depois, tudo se tornou parte do Raj Britânico, território do Reino Unido no subcontinente indiano. As coisas complicaram após a independência e partilha dos países, em 1947.
Em resumo, o plano dos britânicos foi dividir o Raj Britânico entre um país de maioria hindu (a Índia) e outro de maioria muçulmana (o Paquistão). Bangladesh, na época, era o território do Paquistão Oriental, pertencendo ao país que fica do outro lado da Índia.
Como as relações entre Índia e Paquistão nunca foram, exatamente, amistosas, a vida para quem morava nos enclaves era relativamente complicada. Havia vilas que nem luz tinham, já que um país não deixava o outro passar fiação por seu território. Quando o Bangladesh conquistou sua independência, em 1971, conversas sobre os enclaves foram iniciadas entre os dois países.
Um acordo para troca dos enclaves chegou a ser firmado em 1974 e foi ratificado no mesmo momento pelo governo bangladense, mas recusado pelo governo indiano. Isso porque, com uma troca simples, a Índia perderia 40 km² de seu território. Considerando que, na época, o país passava por disputas territoriais importantes com outros países, conceder terras para Bangladesh poderia ser considerado uma fraqueza.
A vila de Dahagram-Angarpota é o único enclave que permaneceu, após o acordo de 2015 (Imagem: Wikimedia Commons)
Desse modo, o acordo só foi ratificado pela Índia 41 anos depois, em 2015. À meia-noite de 31 de julho daquele ano, os territórios foram trocados e a bagunça de enclaves entre os dois países terminou. As 51 mil pessoas que viviam nessas porções de terra tiveram a escolha de mudar sua cidadania ou ir para o território do seu país.
Hoje, só existe um enclave simples, a vila de Dahagram–Angarpota, que fica dentro do território indiano, mas pertence a Bangladesh. Cerca de 17 mil pessoas vivem nele, mas podem acessar o resto do território de seu país, já que o governo indiano concedeu um pedaço de terra para isso.