Ciência
17/06/2024 às 16:00•3 min de leituraAtualizado em 17/06/2024 às 16:00
O Congresso brasileiro está em vias de avaliar o chamado "PL do Estupro", um projeto de lei que visa criminalizar mulheres que realizarem aborto após as 22 semanas de gestação. Se isso acontecer, elas correriam o risco de serem acusadas de homicídio.
A ideia é restringir mais as possibilidades de aborto legal no país, que é quando a mulher tem direito, por lei, de interromper a gravidez. Atualmente, as condições já são bem reduzidas: isso pode ocorrer em casos de gravidez por estupro, de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal.
A questão é que a proposta desse PL ignora certas situações recorrentes no país, como o caso de crianças estupradas, cuja gestação, muitas vezes, só é constatada depois das 22 semanas. Por isso, o projeto sinaliza um retrocesso, uma vez que, há mais de 80 anos, esse tema já entrava em pauta.
Esta história se iniciou durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, com o projeto do Código Penal de 1940. Na época, juristas foram convocados para atualizar a lista de leis do país, tendo como espelho as legislações europeias da época. "A maior influência veio das leis italianas criadas durante o regime fascista de Benito Mussolini, que já previam a exceção do aborto em caso de estupro", explicou o professor Sérgio Salomão Schecaira, professor de Direito Penal da USP, em entrevista à BBC.
Estabeleceu-se então no código penas de 1 a 3 anos para a mulher que provoca o aborto em si mesma ou permite que outra pessoa o faça. Já quem realiza um aborto em uma gestante pode pegar até 20 anos de prisão, caso ela morra. Só poderia escapar dessa condenação em duas situações: o aborto ser necessário ou no caso de estupro.
De acordo com a professora Maria Cristina Carmignani, que leciona História do Direito da USP, a exceção posta em lei aos casos de aborto refletia o contexto de sua época, e tinha pouco a ver com o direito da mulher ao próprio corpo. " Não era exatamente (para proteger) a honra da mulher, que era vista como a filha, irmã ou mulher de um homem. Era para proteger a honra destes homens. Se uma mulher fosse deflorada, isso manchava a honra da família toda", declarou à BBC.
Antes dessa "evolução", o aborto havia sido expressamente criminalizado no Código Penal de 1830, criado no período imperial. Uma pessoa que ajudasse uma gestante a abortar poderia pegar até 5 anos de prisão, pena que era duplicada caso isso ocorresse sem consentimento.
O mais curioso desse momento histórico é que a mulher que abortava não era então considerada uma criminosa. "Isso foi fruto do espírito liberal da época. Não se punia a mulher que fizesse um aborto, porque ela não estava fazendo mal a outra pessoa", complementa Carmignani. Ou seja, caso se expusesse a um aborto, ela estaria assumindo os riscos contra a própria vida.
A mulher passou a ser vista como alguém passível a ser punida pelo aborto a partir do Código Penal de 1890, reformado após a Proclamação da República. Ela passou a ficar suscetível a penas de 6 meses a 5 anos de prisão, mas poderia ter sua condenação abrandada caso o aborto tivesse sido feito para "ocultar a desonra própria".
O atenuante da defesa da honra caiu no Código Penal de 1940, quando foi criada uma exceção aos casos de gravidez decorrente de um estupro. "Com o desenvolvimento da Ciência e da Medicina, passou a predominar a questão em torno da proteção da vida. Mas ainda era preciso ter no código um atenuante que substituísse a honra, que ressurge sob a ótica da violência", explica Maria Cristina Carmignani.
O mais chocante aqui é que o estupro não era visto exatamente como uma violência contra a mulher, mas contra a sua família. Por conta disso, vigorou na lei que, se o estuprador se casasse com a vítima, ele poderia não ser punido – atenuante que só desapareceu no Brasil em 2005.
Mudar a lei, contudo, não significava mudar os valores que circulam na cultura. "O conceito de honra se torna anacrônico em uma época em que passam a prevalecer os direitos individuais, porque a honra nunca foi individualizada, mas familiar. Mas ela reaparece no novo código com outro significado", afirma a antropóloga Lia Zanotta Machado, da Universidade de Brasília (UnB).
Desde então, só teve uma mudança significativa na lei quanto ao crime do aborto, e ela decorre de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2012, que incluiu a exceção dos casos de feto em anencefalia, um tipo de malformação cerebral que leva o bebê à morte ainda na gestação ou pouco tempo após nascer.
De acordo com o professor Sérgio Salomão Schecaira, "todas as reformas penais apresentadas — e não foram poucas — que propunham novas regras para o aborto ficaram paradas. Por pragmatismo, passou-se a não tratar do aborto nestas propostas e a discutir temas menos conflituosos para conseguir avançar de alguma forma".
A inserção de uma ideologia religiosa por muitos parlamentares, "sequestrando" a pauta, também tem feito que a questão não avance, e que muitas mulheres que sofreram violência (o que inclui sobretudo a camada mais vulnerável: as crianças), tenham agora a chance de ser ainda mais violadas, caso o PL seja aprovado.