Ciência
08/11/2022 às 11:00•4 min de leitura
Em 21 de setembro desse ano, estreou a série Dahmer: Um Canibal Americano, do produtor Ryan Murphy, detalhando a jornada de vida e crimes cometidos pelo infame serial killer Jeffrey Dahmer, nos Estados Unidos da década de 1970. A atração se tornou o terceiro produto mais visto na história da Netflix, acumulando 196 milhões de horas assistidas nos primeiros cinco dias, fechando as quatro semanas iniciais no catálogo do serviço de streaming com 856 milhões de horas – ficando atrás apenas de Round 6, que tem 1,6 bilhão de horas.
A série foi renovada para uma segunda temporada, mas para além dos impactos midiáticos, econômicos e complicações de interesse interno – o contrato de Murphy com a empresa acabaria em 2023 –, o produto rendeu uma onda de críticas acerca da quantidade de peças midiáticas falando sobre crimes hediondos e mentes psicóticas, até mesmo para a plataforma, que possui um catálogo extenso, indo de Ted Bundy a Charles Cullen –, e o quanto isso pode perturbar e influenciar pessoas.
Então, qual é o impacto do true crime na sociedade?
Britnee Chamberlain. (Fonte: Extra Online/Reprodução)
No Halloween desse ano, o empresário brasileiro Alan Moséna viralizou nas redes sociais e foi criticado por ter se fantasiado de Dahmer para uma festa, em Manaus, capital do Amazonas. Além da caracterização, o homem também segurava um pó, simulando a droga usada pelo assassino para dopar as vítimas antes de cometer os crimes.
Para os usuários das redes, como o Twitter, a principal crítica à fantasia é que ela remetia a alguém que realmente existiu e trouxe dor e desgraça para as vidas das pessoas, se tornando famoso apenas por isso. “Se fantasiar de algo fictício, como vampiro ou bruxa, é uma coisa, agora de um assassino que matou pessoas reais?”, criticou um internauta.
Mas Moséna está muito longe de ter sido o único. Britnee Chamberlain, de 28 anos, possui uma tatuagem com o rosto de Dahmer e sua emblemática frase: “Se não puder vencê-los, coma-os”. Em muitas entrevistas, a jovem alegou que sua intenção não era glorificar a imagem de um indivíduo que assassinou 17 homens e meninos, desmembrou-os e os comeu, mas sim retirar o sentido metafórico da citação – que seria algo como "não se deixar ser derrotado pelos outros".
(Fonte: ETC e Pop/Reprodução)
Chamberlain ainda ressaltou que ficou simplesmente curiosa e obcecada sobre serial killers e suas motivações, embora não tolere seus atos. Esse tipo de declaração é a síntese da aura fabulesca por trás da cultura da espetacularização do absurdo alimentada, principalmente, pelos norte-americanos, esta que, inclusive, foi retratada de maneira brilhante pelo cineasta Jordan Peele em seu mais recente filme Nope.
A jovem de 28 anos faz parte de uma verdadeira avalanche de pessoas que prosperam no conteúdo true crime impulsionados pelo interesse psicológico e desejo de compreender a realidade de atos horríveis que a mente humana não consegue prospectar.
(Fonte: Texas Public Radio/Reprodução)
O cientista comportamental Colton Scrivner chama de "curiosidade mórbida" o fenômeno referente à tendência de buscar informações sobre circunstâncias perigosas, o que alimenta a indústria cinematográfica do true crime.
Em termos psicológicos, o especialista determina que isso faz parte do comportamento de inspeção de predadores, algo comum na natureza, especialmente entre os subadultos, e consiste na inspeção de um predador à distância, permitindo que a presa aprenda mais sobre como seu predador se parece, quais são seus hábitos e seu estado motivacional atual.
É uma característica humana imaginar eventos e experimentá-los por meio de simulação mental, podendo gerar cenários onde o benefício de aprendizagem percebido é alto, porém o custo de aprendizagem é baixo. Essas situações atraem nossa atenção agindo como doces para mentes ansiosas, e está no centro da curiosidade mórbida. Perguntas do tipo “como um assassino age?” nos intrigam porque atingem a necessidade de evitar predação, o que, consequentemente, leva à busca obsessiva por análises – ou seja, conteúdo.
(Fonte: Forbes/Reprodução)
Por outro lado, de acordo com uma pesquisa publicada no Sage Journals, o consumo de notícias, matérias, filmes, documentários ou qualquer outra mídia envolvendo crimes, pode levar a um medo maior de se tornar uma vítima. E para aqueles que são sobreviventes da violência, pode ser ainda pior.
Para a professora de criminologia da Universidade do Sul da Flórida, Dawn Cecil, os fóruns de true crime espalhados pela internet – destinados a questionar e apontar erros judiciais ou analisar casos – também se tornaram câmaras de eco que alimentam o medo ou reforçam crenças preexistentes. O excesso de consumo de conteúdo true crime pode distorcer a percepção das pessoas sobre o crime e reforçar estereótipos. Um exemplo muito próximo disso foi o podcast A Mulher da Casa Abandonada, da Folha de SP, contando o caso de Margarida Bonetti, que envolveu o público e o polarizou de maneira que o crime entrou para o rol de circos midiáticos que prejudicaram investigações com o excesso de opinião pública.
(Fonte: The Des Moines Register/Reprodução)
Quando em 10 de junho de 1912, em Villisca, Iowa, seis membros da família Monroe e dois hóspedes foram brutalmente assassinados, a cena do crime foi totalmente destruída por populares que queriam muito mais do que saber o que havia acontecido, mas experimentar a situação de maneira tão intensa a ponto de roubar um crânio do local. Pessoas do mundo inteiro viajaram para a cidadezinha para fazer uma visita à casa dos Monroe, que se tornou uma espécie de museu assombrado.
Essa motivação deu início aos primórdios do turismo macabro que, apesar de ter sido definido apenas em 1996, quando foi percebido um aumento no turismo em locais onde John F. Kennedy foi assassinado, data do século XIX. A obsessão pelo que aconteceu em Villisca foi catapultado pelo crime de Lizzie Borden, em 1892, considerado a cultura do século devido ao seu contexto de tragédia grega e detalhes obscenos.
Atualmente, o mercado do turismo macabro foi avaliado em US$ 30 bilhões, com estimativa de alcançar até 35,6 bilhões em 2032. Isso são séculos de obsessão por crimes que, inclusive, segundo a mídia, estão sendo responsáveis por dessensibilizar a população com o excesso de informação sobre violência.
(Fonte: Medium/Reprodução)
A opinião de Melanie Haughton, professora de psicologia da Universidade de Derby, é de que as pessoas são atraídas para certos locais com uma história sombria, como Auschwitz, mais por associação a elementos históricos, do que efetivamente curiosidade humana, como acontece no caso do turismo macabro onde serial killers viviam ou cometeram seus crimes violentos. Para ela, a mídia tem sim muito a ver com isso.
Sarah Ward, autora da série DC Childs, já acredita que as pessoas são ótimas em compartimentar o que é real, o que aconteceu no passado e o que é ficção, podendo preservar seu choque perante um crime.
Dean Fido, professor de psicologia na University of Derby, enxerga que a obsessão da sociedade pelo true crime ao longo do tempo normalizou esses eventos e fez as pessoas pensarem que podem ser vítimas em potencial, mesmo que seja estatisticamente improvável.
Afinal, por este ângulo, esse ainda são os EUA da década de 1950, onde a morte e o crime criaram da selva de pedras que é Nova York, com os crimes de Richard Cottingham, ao interior do Texas, com o assassinato da família Clutter. Esta obsessão fascinante pelo choque está nos olhos de Truman Capote, que em seu A Sangue Frio, levou leitores do mundo inteiro a um mergulho intenso, humanizado, perturbador, brutalmente cativante e muito similar às falas de Dahmer em entrevistas que tentaram entender quem era o homem para além dos óculos aviador e do olhar placidamente vazio.